"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

sábado

Bagagem

Quanto tempo até eu voltar a ser minha? Quando tempo dessa névoa? A criatividade chega no escuro. Uns três anos atrás eu estava em um bar, e um cara me perguntou:
- Se você tivesse certeza do que quer, pra onde você iria agora?
E eu me lembro de ter respondido que iria pra longe, pra bem longe daqui. Essa cidade pequena, com gente tacanha, que cuida da vida dos outros e amarra as portas dos guarda-roupas velhos com barbantes de soberba e julgamento. Guarda-roupas lotados de trapos, desnecessários, mas sempre ali, guardados através dos anos, assim como as ideias deles.
Eu iria pra longe, pra alguma capital, lá onde as pessoas não se importam com a vida dos outros porque estão tomados demais pela loucura de manter a sua, e o trânsito, e a variação do dólar. Quem sabe por lá minha sexualidade não fizesse diferença. Ou o meu cabelo, curto demais para uma dama, ou as minhas tatuagens, ou a minha ânsia de viver algo mais sincero do que a mentira de um casamento sustentado pela asfixia das tradições, um emprego medíocre que vai me consumir o tempo, a vida, e do qual eu não gosto, uma casa vistosa, que eu vou decorar, e encher de louças bonitas pra mostrar às visitas, louças que eu não sei usar ou manusear, visitas que não querem realmente estar me vendo, e tudo isso para um café às três da tarde com tios ou sogra – o que muda? – os quais na verdade preferiam, assim como eu, estarem longe, longe dali, anos atrás.
Mas os anos passaram, e não, eu não sai dali. Eu nem tentei sair dali. Também parei de tentar convencer as pessoas sobre a necessidade de sair dali nas conversas nos bares. As cidades pequenas nos impregnam de uma letargia da qual não se pode fugir. Embora as grandes, li em um livro, nos mortifiquem com seus prédios cinza e sua apatia, e disso a gente também não possa fugir, porque deixa os pulmões pequenos, duros e pouco funcionais (igual ao cigarro). Na verdade, essa irrealidade faz parte do nosso tempo. A maquinaria e a ficção científica fizeram tudo tão polido e tão brilhante, tão perfeito, tão extasiante, que os sentimentos e as delicadezas das coisas se retiraram – formando um ambiente mais limpo e matemático. E o que sobrou foi isso. Gente sem cor, sem força, alheia.
Mas gente feliz! Sim! Gente feliz!, nos empregos estressantes, nas louças caras, nos cafés com a família às três da tarde. Gente feliz com a tradição, com a ordem e a familiaridade da ordem. Gente feliz, incapaz de sentir qualquer coisa real, inclusive aquilo que alguém um dia chamou felicidade. Mas sem crise. Para isso inventaram as pílulas, magia psicotrópica mais magistral que a dos antigos (cheia de rituais e selos em prata e complicações). As coisas agora são simples, exatas, diretas.
Mas mesmo nunca tendo tomado uma dessas pílulas, eu me sinto como que amortecida, da mesma forma que elas me deixariam. Talvez seja efeito placebo da modernidade. Me sinto vazia, distante, distante – mas não dessa cidade, não desse tempo, não desse absurdo todo. Distante apenas de mim, do real, do minimamente possível num mundo onde o sublime ainda pudesse existir e fazer sentido. Meus sentimentos e minha vontade, já não são meus. Perderam-se no ar, junto ao cheiro da chuva e dos carburadores. Eu não me controlo, não me guio, nem sequer me percebo.
Talvez, e eu acho que sim, essa seja a forma como todas as pessoas (a maioria delas) se sente hoje em dia. Mas com a diferença de não prestarem atenção o suficiente para descobri-lo. Eu acredito que o comum é isto: essa distância entre o corpo e a personalidade, entre a sobrevivência física e os sonhos, os sentimentos nobres, as atitudes idealistas, heroicas e românticas. E é por isso que ainda não saí dessa cidade. É por isso que já não falo a ninguém sobre esse tipo de pensamento que me assalta. A ciência evoluiu de tal forma que anulou, por baixo dos panos, aquilo que não pôde entender. E nós aceitamos contentes, afinal, a ciência está sempre certa.
Eu realmente queria conseguir sair dessa cidade. Queria conseguir largar aquele meu emprego, explicar para os meus avós que eles desperdiçaram suas vidas inteiras e continuam gastando da forma errada os últimos minutos que lhes restam. Queria explicar para a minha amiga, para minha apaixonante amiga, que se ela não morrer de anorexia, vai morrer de modernidade, e que eu a amo, Que Eu a Amo, e que nós poderíamos fugir juntas dessa cidade pequena e dessas mentes confusas. Mas ela também é confusa. A doença, as revistas de moda, seus pais, os sonhos de seus pais, seu emprego tedioso, seus estudos, seu futuro garantido...  Acho que nunca vou conseguir deixar essa cidade.

terça-feira

Sina

Eu não tenho nada. Meus 23 anos foram mentira e solidão, e provavelmente continuem sendo, pois os anos não mudam além do número. A pessoa não muda, apesar do número, eis a grande verdade. Mas por um tempo as coisas melhoraram um pouco, conheci uma pequena. Ela era uma coisa tão frágil e quebradiça que, quando passou pela minha frente, eu não pude simplesmente chutar. E ela veio pedir arrego logo pros meus olhos, que eram os mais vazios e deturpados e caóticos e suicidas do bar. Não tive escolha. Quando uma pequena como aquela olha triste em seus olhos, você simplesmente não tem direito de ignorar. Questão de moral, até pra gente como eu, que já perdeu todo o moral no caminho. Acabei indo sentar com ela. De princípio me intrigava, ela era tão pura para aquele pub decadente... Acho que foi por isso que eu me senti obrigado a atender o chamado dos olhos dela: uma pequena como aquela, num bar como aquele? Algo de muito errado estaria acontecendo. Eu sou vidrado em coisas muito erradas.
Depois de uns quarenta minutos de conversa atrapalhada - eu tentando não jogar meu bafo de álcool e nicotina misturado com retórica da depressão pra cima dela, e ela totalmente calada e fechada enquanto percebia (e gravava) cada milimetro do meu niilismo de bar - tomei coragem e convidei ela para ir a outro lugar. Já passava da uma da manhã e meu hálito provavelmente acabou transparecendo, e eu imaginei que uma guria como aquela jamais sairia com um desconhecido. Fiz o convite mesmo assim, porque me sufocava tê-la ali, naquele ambiente cansado no meio e pervertido nos cantos... Mesmo jurando que ela diria não. Talvez eu quisesse só dar o fora dali - a pureza dela a princípio me maltratava, corroía. Contudo, ela veio. Fiquei perplexo, levei ela a uma praça. Poderia tê-la levado à minha casa, mas essa ideia me pareceu blasfêmica. Sentamos num banco, ela ergueu a cabeça e mirou de novo nos meus olhos condenados. Não aguentei mais.
- Por que você tá aqui, comigo, numa hora dessas? Você não parecia se divertir lá no bar, estava sozinha. Estava esperando alguém? Você deve ter família, amigos... Nunca te ensinaram a não aceitar convites de estranhos? Você nem deve ser maior de idade...
E ela sorriu. Sorriu, olhou as próprias pernas, olhou para mim de novo, e levantou. Eu imaginei que ela fosse embora, mas ela andou em direção ao pub. Tive que segui-la, em parte por não poder deixá-la sozinha, e em outra parte por não conseguir deixá-la fugir de mim.
Entramos juntos no pub, sem trocar palavra. Ela foi direto ao bar, pediu três doses, e virou-as ainda sem olhar para mim. Depois foi aonde as pessoas dançavam, e dançou também. Flertou com alguns homens, mas não beijou nenhum. Ela tinha uma magia no olhar que coibia qualquer homem a venerá-la, mas ao mesmo tempo fazia com que eles se sentissem culpados em tentar contato, o que explica que, àquela hora, com tanta gente ébria na casa, nenhum lábio tenha tocado o dela a contragosto. Eu fiquei lá, sentado no bar, olhando o que ela fazia. Divertia-me um bocado vê-la - sabe aquele feitiço de crianças brincando ou garotas arrumando o cabelo?, eu não podia tirar os olhos, tamanho o prazer que a cena me dava. Depois de muito tempo e mais várias doses, ela se sentou junto a mim no bar, mas virada para o outro lado. Foi a primeira vez que me olhou desde a praça. Não hesitei: - Vamos embora?. E ela disse "Claro".
Pegamos o primeiro metrô da manhã, para a minha casa. Ela entrou, tirou os saltos altos, foi direto ao meu quarto e se jogou na cama. Eu sorri. Joguei uma manta sobre ela e fui checar meus armários. Vazios, obviamente. Tomei um banho e fui ao mercado reabastecê-los, cochilei e depois fui preparar um almoço. No meio da tarde, ela acordou. Eu esperava que ela acordasse confusa, assustada, querendo sumir da minha casa. Mas não. Disse que estava com fome, comeu e depois sentou-se ao meu lado, na varanda. Eu não conseguia acreditar. Conversamos por muitas horas, sobre tudo. Ela me contou que estava meio perdida, que precisava fugir um pouco de si mesma. Eu compreendi com excelência, uma vez que sou perito em fugir de mim, e não questionei. De qualquer forma eu não poderia ajudá-la, e não queria afastá-la. Compreender o que a pessoa sente (ou fingir compreender) sempre foi e será mais eficaz do que tentar convencê-la de algo. Ademais, cuidar dela era o meu novo vício - e teriapia -, por isso eu nunca a contra argumentei. Talvez ela pudesse me salvar, afinal, com sua pele angelical e seus olhos ingênuos. Outra grande verdade oculta é que mesmo as atitudes mais bonitas têm raízes no egoísmo mais vil - o bem estar do próprio altruísta com a ação, às vezes até mesmo a sensação de perdão aos próprios erros. Na noite daquele dia eu coloquei Billie Holiday para tocar, no notebook. Ela sorriu e cantou junto. Cantamos. Eu, cantando na varanda. Inacreditável. Acho que foi o melhor dia que vivi até hoje... Aquela guria era meu altar.
***
Hoje já faz dois anos que a conheci. Encontrei um cd da Lady Day que ela me dera; as preferidas dela... Nós não conversamos mais. Ficamos juntos por mais de um ano, eu sugando a força vital dela como um vampiro mental. Um íncubo. Fingia que era proteção, mas eu e ela sabíamos o quanto de obsessivo havia na minha atitude. Eu acho que suguei tudo dela. Alimentei-me dos mínimos resquícios de infância que encontrei em seu corpo... Destruí aquela inocência e roubei toda a beleza pueril. E a minha culpa me transformou de protetor enamorado a monstro. Ela fugiu, como fazia sempre. Eu não queria deixá-la fugir, mas percebi que era o mais digno a ser feito. Não que eu tenha dignidade. Acho que eu simplesmente a amava. Eu amei alguém. E deixei esse alguém ir embora, tamanha a toxidade da minha companhia... A honra da tragédia. Seria até bonito, se não fosse comigo... Agora assisto à dor e à solidão renascerem em mim.

I'll find you in the morning sun,
and when the night is new
i'll be looking at the moon...
But i'll be seeing you.

quarta-feira

"we 'feel free' because we lack the very language to articulate our unfreedom" - Slavoj Zizek

sábado

those demigods with their nine-inch nails and little fascist panties tucked inside the heart of every nice girl... (tori amos)

How could you look the way you do, when we can do so much for you?
A drug for eyes, a drug for hips, a drug to give you sweeter lips to kiss
A screw, a pull, a twist, the drug that makes you prettiest
[...]
It's sad but true, you'll be ignored - Unless you have a credit card
Imagine life fulfilled and fun; you could be a model, or just feel like one...
Girls, the men are playing court, to us, girls are playing everything they ought
Because we're beautifiers, face-destroyers, aunts, mothers, sisters, daughters
Buy it, use it, feel it, let it, If you don't, you're ugly sad and tragic...
An 85 step diet plan - You need to try to please that man
(amanda palmer)


quarta-feira

Amor

Quatro horas da manhã, a música ricocheteava na cabeça junto com pensamentos incertos e um tipo de enjôo. A bruma de nicotina que imperava por todos os lados estava começando a sufocá-la, então resolveu sair de lá. Das duas amigas com quem ela viera, uma já havia ido embora, acompanhada, e a outra parecia divertir-se a valer com o assunto da roda em que estava. Decidindo não atrapalhar, ela saiu sem se despedir. O plano era ir para casa, tomar um longo banho e dormir sozinha, na paz que domina uma mente depois de algumas horas de boate e tumulto.
O pub onde estavam ficava em uma ruela perdida entre a periferia nobre e a marginal, e três ou quatro ruas acima existia uma praça, onde ficavam os mototáxis. Enquanto saia do lugar, Brígida olhou para as paredes prestando atenção aos detalhes. O corredor apertado que levava à saída tinha paredes de tijolos, decoradas com espelhos manchados de margens extravagantes e folhetos de shows envelhecidos, pendurados e colados aleatoriamente. Abriu a porta e do lado de fora observou que, para quem não conhecesse o lugar, poderia passar por ali todos os dias sem nunca percebê-lo. Aquele mistério decadente de boate alternativa era realmente bonito, mas Brígida preferia o próprio quarto. Boates, por mais bela que fosse a decoração, eram sempre abafadas e sem nexo, absolutamente entediantes até que a consciência fosse entorpecida, e desde que a garota decidira não mais se amortecer com álcool ou o que fosse, a música passara a ser patética. Suas amigas, no entanto, achavam que ela precisava gostar desse tipo de coisa pra ser normal, e ser normal significava ser feliz, por isso forçavam-na a acompanhá-las de tempos em tempos. Brígida realmente precisava de ajuda, uma pena que as outras duas não entendessem que pubs não eram a solução. Chegou na praça e viu a casa velha com sofás na varanda onde os mototaxistas aguardavam pela clientela ou pelas ligações, e dirigiu-se ao único homem que estava lá. Foram até a moto, colocaram o capacete, subiram e ele deu partida. Quinze minutos mais tarde a moça percebeu que eles estavam se afastando da sua casa ao invés de se aproximarem, e perguntou se o homem realmente sabia a localização. Ele acelerou e não respondeu, então Brígida começou a ficar apreensiva. No segundo falsear devido à curva realizada bruscamente ela segurou em sua cintura, com medo, retirando as mãos tão logo quanto possível. Foi quando começou a argumentar que ele podia deixá-la ali mesmo, mas claro que em vão. Já estavam em uma estrada que levava à saída da cidade, e ela nem sequer teria como voltar caso fosse deixada ali. Tentou convencê-lo de que estavam tomando o caminho errado e pedir para voltarem, debalde. Depois de muita insistência ela gritou por socorro, e a resposta dele veio na forma de uma derrapada perigosa, depois da qual parou a moto. Ela aproveitou a deixa, incerta de estar tomando a melhor decisão, e correu. Havia campos dos dois lados, e uma estrada longa demais para chegar-se a qualquer lugar a pé por meio dela, então a única alternativa era pular uma das cercas e correr. Não era uma ideia promissora, Brígida podia perceber.
Saltou e correu, com capacete e tudo, tão rápido quanto era capaz. Ouviu o baque dos pés do rapaz batendo no chão depois de pular também a cerca, e ouviu-o começar a correr também. Era uma plantação baixa, sem árvores, não havia possibilidade de se esconder, mas ela podia ver a divisão de arame farpado para a fazenda ao lado, onde o mato e algumas árvores dariam-na maiores chances. Já sem fôlego e desesperada, pulou a segunda cerca, e ainda podia ouvir o impacto dos pés dele na terra, próximo o suficiente para alcançá-la. Logo depois de pular, começou a andar abaixada e depois a rastejar, na esperança de despistá-lo. Escondeu-se cerca de dez metros à frente, entre os pinheiros clonados que cresciam em uma espécie de bosque geometricamente programado. Entrou vários metros em tal bosque, então parou, sentou-se junto a uma árvore e tentou controlar a respiração ofegante, a fim de encobrir o barulho. Seus olhos estavam arregalados pelo terror e pela adrenalina, e a imaginação tão tomada por suposições e pensamentos de fuga que, não fosse o seu corpo em estado crítico de alerta, ela não poderia ouvir nada além de si.
Depois de um tempo que ela jamais saberia medir com certeza, ouviu os passos do homem. A respiração dele estava tão ofegante quanto a dela momentos atras, e assim sendo ele deslisou por um tronco e sentou-se exatamente como ela fizera. Mais algum tempo se passou enquanto o terror a torturava, então Brígida ouviu-o levantar-se. Lembrou-se da religião que a mãe lhe ensinara quando criança e pensou em rezar, mas logo compreendeu que, por ela não ter se agarrado a isso durante seus vinte e cinco anos, tal experiência agora não traria conforto. Como seja, ouviu passos humanos se aproximarem e praguejou, sem saber se era um castigo divino ou pura doença do mundo; levantou-se e correu mais por entre as árvores.
O rapaz ouviu o ruido, e a luz do luar e das estrelas, combinados a sua pupila já devidamente adaptada e a sua audição excitada pelo momento, permitiram-no descobrir para qual lado ela fora. Mais alguns passos e ele a encontrou, agarrou e, apesar da luta e dos gritos, jogou-a ao chão.
Não houve mais voz depois daquilo. Apenas as mãos dele e o olhar dela, de animal enfurecido, de humano ultrajado, de um ódio mais antigo que a própria existência e que perfurava-o mesmo que ele continuasse desviando seus olhos em sua agressão desesperada. Brígida lutou enquanto ele rasgava-lhe a blusa, e lutou muito mais quando suas mãos enfiavam-se repulsivamente por baixo da saia, mas quando percebeu que nem mesmo seu instinto de sobrevivência seria suficiente para igualar-lhes a força física, visto que ela era pequena e delicada, e ele, um homem forte, ela decidiu apelar para uma outra força - a dos seus olhos e raciocínio.
Parou completamente de resistir e fechou os olhos ensandecidos, amolecendo pernas e braços de tal forma que ele aproximou o rosto do dela para checar se havia desmaiado. Não é um estuprador experiente, ela pensou, pois se soubesse o que estava fazendo jamais aproximaria-se de sua boca - a circunstância merecia uma mordida de arrancar pedaço. Contudo, ela sabia que estava presa e que agredir-lhe apenas tornaria o ato mais repleto de prazer para ele. Afinal, tal atitude era a expressão de uma grande fúria e muito ódio, gerados por algum mal estar de proporções dantescas - e quem sente fúria e ódio, certamente gosta de receber fúria e ódio em troca, e a isso responder com mais fúria e mais ódio. Para atingi-lo como era preciso, a atitude dela deveria ser oposta.
Com essa conclusão (que levou apenas algumas frações de segundo) Brígida virou vagarosamente o rosto e beijou-lhe a face. Ele acelerou seu rítmo furtivo, e ela beijou-lhe a boca. Beijou tão docemente como se o amasse, lentamente, com lábios - inacreditavelmente - quentes e macios, e repetiu algumas vezes até que ele se rendeu. O movimento cessou e ele abriu a boca, ela introduziu sua lingua e imprimiu nos movimentos dessa todo o carinho que jamais fora capaz de expressar por um ser humano. Os lábios dele, até então imóveis, começaram a acompanhá-la, delicadamente, e suas ancas, de frenéticas que estavam, passaram a um movimento terno e lento como o beijo que trocavam. Ela finalmente abriu os olhos e deparou-se com os olhos dele, vidrados, com sobrancelhas em um misto de arrependimento e adoração, e uma lágrima escorrendo pelo rosto. Brígida percebeu pela primeira vez que ele era um moço muito bonito, mesmo naquela escuridão torpe e úmida. Passou suas mãos pelas costas dele, e ele se contraiu ao notificar que estavam muito geladas. Êxtase. O carinho dela se transformou em um aperto de unhas livre de julgamento. Ele abraçou-a, e depois levantou-se.
Quando se separaram, ela imediatamente começou a se recompor e tampar. Ele procurou por alguma coisa na bolsa que trouxera, e que agora encontrava-se jogada próxima a eles, enquanto chorava convulsivamente. O rosto dela não tinha expressão alguma. Finalmente, ele encontrou. Tirou da bolsa um revólver, olhou para cima e disparou. Dentro de sua própria boca. Ela gritou e se encolheu.
Uma pena nunca ter sabido o que despertara nele aquele ódio e aquela fúria. Não obstante, ele a havia ajudado. Nunca mais Brígida pisaria em uma festa, mas o conforto de seu quarto simplesmente não poderia voltar a ser deprimente e enlouquecedor como fora até então. Ela nunca mais se sentiria oca por sofrer sem motivo. Aquele homem com olhos de mel fora a única pessoa capaz de ajudá-la, e ela seria eternamente grata. Pegou a bolsa dele, o capacete, a chave da moto - que estava no bolso da calça jeans que ele sequer levantara -, e saiu. O banho quente e o vazio mental seriam muito mais completos hoje anoite. Era uma pena que o dia já clareava.



~~~

"Ele deixou cair no cinzeiro o cigarro que se apagara.-Uma vez, quando era menor ainda do que você, brincava com um espelhinho à beira de um poço da minha casa, eu morava numa fazenda meio selvagem. O poço estava seco e era bonito o reflexo do espelhinho correndo como se fosse uma lanterna pela parede escura, sabe como é, não?Mas de repente o espelho caiu e se espatifou lá no fundo.Fiquei desesperado, tinha vontade de me atirar lá dentro pra buscar os cacos do meu espelho. Então alguém - acho que foi meu pai - levou-me pela mão e me consolou dizendo que não adiantava mais nada porque mesmo que eu juntasse, um por um, os cacos todos, nunca mais o espelho seria como antes. Sabe, Virgínia, vejo Laura como aquele espelho despedaçado: a gente pode ir lá no fundo e colar os cacos, mas tudo então o que ele vier a refletir, o céu, as árvores, as pessoas, tudo, tudo estará como ele próprio, partido em mil pedaços.Veja bem, triste não é o que possa vir a acontecer...a morte, por exemplo. Triste é o que está acontecendo neste instante. Ela tem a cabeça doente, o coração doente...E não há remédio. Só o sopro lá dentro é que continua perfeito como o espelho, antes de cair no chão."

(Lygia Fagundes Telles)

sexta-feira

lânguido, lúgubre

Um tiro na cabeça. Um buraco escarlate. Uma rosa desabrochada, úmida, pervertida. Umas gotas de sangue espirradas na parede, fúria e dor. Uma poça sarcástica no chão, os fios negros empastados. Na parede uma nota grudada com fita adesiva, em nada semelhante a um bilhete de suicídio por ser breve - a letra redonda, firme, equilibrada, o papel nem sequer amarrotado. "Pra nunca mais ser julgado." Mas julgariam silenciosamente a sua fuga enquanto fossem capazes de transmitir sinapses.

domingo

A minha coisa de cabelos castanhos

Passei pela sala, minha irmã tava assistindo um concurso de beleza.

_ Vai assistir algo que não diminua teu cérebro, Giovana. Teus neurônios tão se suicidando!


_ Lucas, vê se me erra. Por que não volta pros teus quadrinhos infantis, hein? Aquilo sim é intelectualidade. Aposto que teu QI triplica a cada fala de 100 caracteres.


Mas eu nem tava lendo quadrinhos. E não eram infantis, mas ela nunca tinha aberto um. Saí no quintal, me apoiei no varal pelas juntas dos braços e soltei o peso. O varal é meio baixo e eu sou meio alto. Fiquei passando o pé descalço no chão molhado, choveu agora há pouco, e fiquei encarando o céu com os olhos espremidos, acho que eu devo passar menos horas enfiado no meu quarto ou vou acabar fotofóbico. Tanto faz, nem gosto muito de sol de qualquer jeito.


Depois de um tempinho o braço começou a doer, daí andei um pouco em círculos e voltei pra porcaria do meu quarto. Deitei na cama. Caralho, que tédio. Talvez eu devesse mesmo ir ler um quadrinho. Sabe, eu era bem ligado nessa de quadrinhos, me divertia à beça. Sei lá por que, mas ultimamente perdeu a graça. As publicações novas não estão prendendo meu interesse, e os clássicos que eu já conheço de cor se tornaram insuportavelmente monótonos. A Giovana deve estar certa. Acho que eu fiquei velho pra aquela merda.


Sentei no computador e entrei no msn. Tem que ter um desgraçado à toa pra sair comigo. Rolei a barra. Ninguém de interessante, que merda. Fui ao youtube, mas que estranho, nenhuma das bandas que eu conheço surtiram qualquer efeito. Aí abri outra aba e digitei por ninfetas, no google imagens. Eu poderia procurar pornografia de verdade, é que sei lá, tô quase bêbado de preguiça, quero algo leve.


Umas menininhas pirralhas, que coisa não?, e umas outras anônimas no momento daquelas fotos provavelmente tão entediadas quanto eu estou agora. Fui passando as páginas, mas nem deu vontade de continuar. Uns peitos feios, disformes. Deixa pra lá. Aí notei que a Julinha tava online. Julinha é minha amiga. Às vezes a gente se pega, outras vezes a gente só conversa. É que a Julinha é meio criança de vez em quando, mas ela é engraçada. Cliquei no nome dela e disse que tava indo pra lá, ela nem respondeu mas eu fui mesmo assim. Ela mora aqui perto. Fui saindo, aí a mala da minha irmã chamou querendo saber quando eu voltava.


_ Sei lá Gi, antes do natal.


_ Idiota.


_ Fala pra mãe que eu fui na casa da Julia.


Aí ela respondeu com um grunhido afirmativo e eu saí. Sei lá, eu gosto da minha irmã. Ela é meio imbecil às vezes mas é coisa da idade. O porteiro já me conhecia, então me deixou entrar, aí subi com o elevador e cheguei a mão na porta. Aconteceu que tava o maior berreiro lá dentro, então eu não bati na porta. Era o pai dela gritando com ela. Hesitei por uns segundos, e quando eu ia decidindo que era melhor ir embora ouvi um barulho na maçaneta. A porta abriu e o pai dela saiu, transtornado e ofegante. Eu sai do caminho dele. Ele se sobressaltou um pouco com a minha presença, mas bem pouco. Aí parou na minha frente, olhou pra minha cara, primeiro com vestígios da raiva que expressara há pouco, mas logo em seguida ele soltou o ar que estufava-lhe o peito e me lançou um olhar de derrota. Eu fiquei meio sem reação, não sabia se devia abraçar ele ou ficar puto por ele ter gritado daquele jeito com a minha amiga, ou simplesmente correr antes que toda aquela fúria voltasse e se virasse pro meu lado. Mas acabei só ficando parado, com cara de taxo. Aí o pai dela saiu e desceu pelas escadas, sabe-se lá para onde, sem transparecer mais nada. Eu entrei.


A cena era meio triste. A Julinha tava sentada no canto da sala, abraçada com os joelhos, chorando aos soluços, parecia uma criancinha indefesa. A Julia tem muito disso. Tem hora que ela é inconsequente e maluquinha, e impera sobre a turma toda. Mas tem outras horas que ela simplesmente fica vulnerável e desprotegida, e por algum motivo nessas horas eu fico louco de vontade de abraçar ela bem forte, fazer um carinho e dizer que vai passar. Foi mais ou menos o que eu fiz.


Fechei a porta e tranquei, a chave ainda estava lá, e fui me sentar ao lado dela. Ela só levantou o rosto pra ver quem era, mas continuou exatamente como estava. A gente ficou lá em silêncio uns quarenta minutos, eu encostado na parede e ela encolhida em mim, e as lágrimas foram acabando. Findo esse tempo, ela disse que tava com fome. Eu sei que eu devia ter levantado e ido arrumar algo pra ela comer, mas se eu deixasse aquele momento de fragilidade escapar, ela nunca ia me falar exatamente o que estava acontecendo. A Julinha é bem assim. Ela é completamente legível por suas atitudes e comentários, mas tirando os momentos de desgraça em que abaixa todas os muros, ela nunca fala qual é a real. Ela é carente pra caramba, mas odeia expor os fatos. Eu não sei do que ela tem medo, mas sei que ela se sente tão confortável nessa instabilidade que evita racionalizar. Ohei pra cara dela e perguntei bem sério:


_ Porque ele tava gritando?


Ela ficou em silêncio. Deu pra ver que ela estava metade lidando com a dificuldade que tinha pra responder, e metade planejando como desconversar. Mas acabou soltando:


_ Ele tá exausto de mim, assim como todo mundo. E ele está certo. Eu tenho feito todo mundo louco. Eu tô fazendo de tudo pra tornar mais doloroso pra ele, mas eu sei que não foi culpa dele. Sei mesmo. É que eu sinto muito ódio, e tenho descontado nele, por ele ser o único que tem obrigação jurídica de me suportar, mas também em mim mesma. Por isso tanta inconsequência. Por isso tanta resposta ríspida. Mas eu tô acabando com ele, e hoje ele precisou gritar. Ele disse que eu sou a maior egoísta do mundo por querer piorar tudo pra todo mundo só porque eu não consigo superar. Ele foi pra um hotel e me deixou o número dele. Disse que ele também tem algo para superar, mas que se eu mudar de ideia, é só eu ligar e ele volta pra cá, pra nós passarmos por isso juntos. Aí eu gritei que ele queria era reconstruir a vida dele com qualquer vadia e deixar eu me me matar que nem ela fez, que queria se livrar do estorvo que eu sou assim como se livrou dela, ou então deixar eu me perder no mundo pra parar de impedir a felicidade dele. Eu disse um milhão de bobagens, todas as piores que eu fui capaz de pensar. Aí ele respondeu que queria que eu entendesse a realidade, e saiu. Mas eu sei que tô errada e ele tá certo. Eu tô com muita fome.


Eu fiquei impressionado com a sinceridade e completamente assustado. Aquela era uma Julia que eu nunca conhecera. Ela falou baixo e lentamente, sem perder o fluxo, e eu estava comovido por ela ter conseguido. Ela definitivamente precisava dizer aquilo em voz alta. Isso foi de uma maturidade que ninguém jamais poderia supor que aquela Julia drogadinha e hostil pudesse ter. O que aconteceu foi que a mãe dela se suicidou, faz acho que cinco meses. A mãe era maníaco depressiva, e um dia simplesmente resolveu tomar uma coleção de comprimidos pra foder com a vida de todo mundo, inclusive a própria. A Julia ficou revoltada, e daí saiu toda essa merda. Levantei e fui até a geladeira, que estava caoticamente vazia. Ela e pai estavam arrasados, nada estava certo pra eles, logo a despesa não estava sendo feita regularmente. Acabei arrumando um macarrão, ajeitei a mesa e tudo, e depois de meia hora fui até a sala e levantei a Julia, que ainda estava no mesmo canto, mas agora toda esparramada e com os olhos vagos. Levei ela até a mesa, comemos em relativo silêncio - ela só agradeceu e elogiou a comida - e quando terminamos, ela me surpreendeu ainda mais: ela sorriu. Levantou, chegou perto de mim, se ajoelhou em frente à minha cadeira, e sorriu de boca e olhos de um jeito todo lindo. O cabelo dela estava uma zona, o nariz vermelho e o rosto inchado, com algumas marcas de unha pelo rosto, mas mesmo assim ficou bonita quando sorriu. Mais bonita ainda porque sorriu pra mim. Aí ela disse "obrigada", beijou minha boca e me deu um abraço terno. Depois me olhou com olhos convidativos, meio safados e um tanto debochados, comprimiu o sorriso, pegou minha mão e foi me guiando até o banheiro, ligou o chuveiro, tirou a roupa e sentou na banheira, de costas pra mim, e foi jogando a cabeça pra trás até que pudesse me ver, de ponta cabeça pela perspetiva dela. Então ela me lançou a maior risada de criança, e eu acabei indo ensaboar o cabelo dela com o xampu. Depois levei ela pro quarto, estendi um cobertor e fiquei lá, olhando ela dormir. Ela era super bonita e eu estava louco de vontade, mas acabei sendo só um pai. Na verdade eu sabia que naquela hora ela precisava mesmo era de um pai, ainda que não soubesse. Na manhã seguinte minha mãe ligou perguntando quando eu voltava, e eu disse que ainda tava na casa dela e tal, aí me lembrei do puta vazio existencial que estava me corroendo antes de eu entrar naquele apartamento. Acho que todo mundo devia usar suas horas de tédio maluco pra cuidar de alguma coisa. Qualquer coisa. Isso preenche, tá ligado? Isso faz bem, e é mais útil. Agora eu vou levar a minha coisa pra tomar um sorvete. Só não consigo decidir se vai ser um programa pai e filha ou um encontro de casalzinho. Pretendo ficar aqui mais uns dias, e depois eu sei que ela vai ligar pro pai dela e ter uma conversa longa e pessoal. Aí eu volto pros meus gibis.

sexta-feira

...

http://www.youtube.com/watch?v=ETTxUVJ6Ti8&ob=av2e
didn't we known?
didn't we feel it?

and we run down the freeway,
hoping to express our religion...
to be free...
of everything...
of everything, yeah

domingo

"Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão." (aldous huxley, the doors of perception)

Confissão (continuação)

Felipe olhou o visor do celular: Andressa, obviamente. Primeiramente sentiu raiva. Ele precisava de reclusão, de tempo, de se organizar, e ela era - sempre fora - incapaz de dar o devido espaço às pessoas. Mesmo assim, devido à culpa por não estar sendo honesto com, Felipe acabou atendendo calmamente o celular. Ele tivera uma resolução nos últimos minutos.
- Alô?
- Felipe, eu te odeio.
- O que? Não, você não me odeia Andressa.
- Você é um idiota. Tem razão, eu não te odeio, mas você é o maior cretino. Você não entende que está errado? Mesmo que você tenha me contado que me traiu, mesmo que você tenha terminado comigo no lugar de manter dois relacionamentos, você é um idiota. Um estúpido! Por que você fez isso, seu imbecil? Por quê?
E Andressa começou a chorar. Felipe levantou-se do meio fio e deu alguns passos a frente, mas sinalizou para que Ed continuasse ali, ele tinha tomado uma decisão. Doía muito em Felipe ouvir os soluços da menina. A relação deles já não estava boa e ela não o compreendia, mas depois de três anos é natural que se tenha um grande afeto pela outra pessoa, e ouvi-la chorar por algo que sequer era verdade era muito difícil. Foi então que Felipe olhou para uma parede, puxou o ar, criou coragem, e falou:
- Andressa, eu sou gay.
Ela parou de chorar no mesmo instante. Ed olhou-o, muito supreso. Ele olhou de volta para Ed, de relance, e voltou a encarar a parede, enquanto sua cabeça girava e reverberava, sentindo uma grande felicidade, um alívio estarrecedor, e muito, muito medo. Tudo isso durou apenas um segundo, que foi o tempo que Andressa levou para se recompôr e então, claro, soltar um grande "O QUÊ???". Felipe sorriu. Agora era tudo muito mais fácil. Sentou-se novamente no meio fio, ao lado de Ed, e respondeu a tudo o que ela perguntou. Disse que ela era uma menina muito íntegra, que tinha várias qualidades, que era sim atraente - e nada disso era mentira -, mas que essa é o tipo de coisa que não acontece, pois simplesmente é. Depois disse que queria vê-la, no dia seguinte, abraçá-la e pedir as devidas desculpas pelo sofrimento que a fizera ter com aquela mentira sobre traição, que queria olhar nos olhos dela e contar o que sentia, que queria dar a ela a chance de compreendê-lo, para que ela pudesse aceitar ou não, e também decidir como seria a relação dos dois dali para frente. Disse, então, que estava na festa de aniversário do avô, que não via a hora de explicar tudo a ela, mas que por hora era melhor que ela absorvesse a informação e pensasse a respeito, que ambos precisavam de tempo antes de esclarecerem tudo o que havia para ser esclarecido, e que ainda a amava muito, porém de uma forma diferente da que ela imaginava. Estabeleceram horário e local, despediram-se e então desligaram o celular.
Felipe colocou o telefone no bolso ainda olhando para a frente, um pouco inseguro sobre o que estaria reservado na feição do primo, e então, vagarosamente, virou-se para encará-lo. Ed estava, a princípio, muito surpreso. Depois fez-se grave. Então ele abriu um grande sorriso, deu-lhe um olhar de cumplicidade e disse:
- Mas por que diabos tu nunca me falou isso???
E abraçou Felipe em um gesto de amizade. Quem estava perplexo, afinal, era Felipe. De tudo o que ele imaginou como reação depois de confessar sua homossexualidade, um sorriso e um abraço era o que ele menos esperava. Felipe expôs, então, tal pensamento, e Ed gargalhou em resposta.
- Felipe, isso não significa nada meu velho. O primeiro passo para destronar o preconceito da cultura da gente é não ser preconceituoso contigo mesmo, mano. Como tu tem coragem de ter vergonha de ser gay? E como é que tu acha que alguém vai olhar pra tua homossexualidade sem julgar se tu mesmo tem vergonha disso? Felipe, brother, pessoas são só pessoas, independente do sexo ou da sexualidade. Beijar homem, beijar mulher, foder homem ou foder mulher não muda teu caráter, não muda quem você é. Eu, na verdade, acho que estar aberto a se relacionar com pessoas - homens e mulheres - te deixa mais disponível a conhecer gente que possa te ensinar algo sobre essa vida, e é por isso que eu não me limito com isso. E tu quer saber? Nada é assim tão sério quando a gente sabe que não é tão sério. Para de achar que ser diferente é grave, só aí é que tu vai conseguir sentir prazer em não ser robô.
Felipe olhava-o boquiaberto - Ed definitivamente ganhara um novo discípulo para sua filosofia informal. As palavras de Edmundo haviam tocado-o muito fundo. Foram tudo o que ele sempre sussurrara à própria consciência, mas nunca teve a coragem de ouvir. Finalmente, vendo alguém assim tão nobre e tão completo, e ao mesmo tempo tão simples, Felipe sentiu-se capaz de fazer aquilo que sempre quisera: deu a Ed o seu primeiro beijo de verdade, o primeiro sincero, o primeiro que ele realmente quis dar, ao qual Ed correspondeu na mais completa harmonia - e beijo nenhum poderia ter sido mais lindo.

--- Fim ---

Identificação (continuação)

- Oi Felipe. Tudo beleza? Cara, cê tá com a maior cara de destruído. Não tá dormindo direito não, é?
- Oi Ed, tô bem sim cara, e você? É, tou quebradaço, tá dando pra perceber? Que merda.
- Mas e a Andressa, ela não veio? Como ela tá?
A Andressa. Felipe sentiu uma enorme preguiça, então, pois o Ed e a Andressa eram colegas e conversavam entre si, então ele precisaria contar a estória da traição, e isso pouco a pouco chegaria nas tias e nas primas e mais olhos julgadores cairiam sobre ele, o que definitivamente não era conveniente agora. Acontece que Felipe não tinha escolha, e mesmo que não contasse nada, Andressa contaria dali a alguns dias, e certamente dramatizando tudo e fazendo-o parecer um crápula. Mas que merda, de novo. Não tinha saída.
- Nós terminamos, cara...
- Sério? Nossa, que duro... Sinto muito. Que que aconteceu? Cês eram tão casalzinho, velho... Não entendo mesmo.
E então Felipe contou sua versão da mentira. A reação de Edmundo foi supreendente. Edmundo tinha lá seus dezoito anos e ainda não abandonara sua rebeldia adolescente. Quando questionado, ele jurava não pertencer a tribo nenhuma, dizia que se limitar assim era ridículo, que ele não era estereotipável, que ele era ele mesmo e pronto. De qualquer forma, para facilitar a descrição, Edmundo tinha algo de punk. Seu cabelo era preto com as pontas azuis, habitualmente espetado, mas agora, com a família toda reunida no aniversário do avô, estava molhado e penteado para baixo por insistência da mãe. Bem, Edmundo tomava banhos e tinha um tênis surrado no pé, no lugar do imaginável coturno, logo ele não era tão punk assim, mas sua jaqueta de couro e a tatuagem do simbolo do anarquismo continuavam ali. O menino era inegavelmente libertário, visivelmente aberto a novas correntes de pensamento, e isso permitia que ele tivesse um ideário de respeito ao diferente, o que confortava Felipe. Mas, apesar de tudo isso, Edmundo tinha uma moral reta, e em circunstâncias normais teria abominado algo como traição em um relacionamento tão sólido como era o de Felipe e Andressa, já que isso quebrava a noção de respeito mútuo, que era algo que Edmundo colocava acima de tudo. Foi por isto que Felipe se surpreendeu: Edmundo perguntou-lhe, com sincera incompreensão e visível perplexidade, contudo sem julgamento ou acusação, o motivo para ele ter feito aquilo.
Era óbvio que traição não fazia parte da personalidade de Felipe. Edmundo sabia bem disso. De todos os primos, Edmundo era o que conhecia-o melhor, e ao unir tal ato com sua feição derrotada, percebeu que o primo não estava bem. Ed colocou a mão no ombro de Felipe e sugeriu que fossem conversar do lado de fora. Felipe, alheio a tudo, deixou-se guiar.
Quando chegaram na esquina do quarteirão, que ficava cinco casas depois da casa onde estavam, sentaram-se no meio fio. Felipe, primeiramente, deixou-se ouvir apenas o silêncio do local, que era prazeroso depois de passar horas condicionado às músicas e vozes da festa do avô. Depois, foi interrompido por um grande nervosismo de quem está prestes a contar uma mentira que ainda não inventou. Foi quando Felipe olhou para Edmundo. Edmundo era diferente. Edmundo não julgava as pessoas. Edmundo era o mais parecido com um amigo que Felipe jamais tivera. E, quando Felipe olhou-o, foi retribuído com um olhar de paciência e preocupação. Felipe sentiu, naquele momento, que confiava no primo, e por isso permitiu-se chorar na frente dele.
- Eu... Eu não traí ela. Ed, você já sentiu algo que você soubesse que era inofensivo e sincero, mas que você tivesse a certeza de que ninguém entenderia?
Ed enrugou a testa e olhou para a rua enquanto pensava, e quando Felipe começou a sentir-se envergonhado, a resposta veio:
- Cara, claro que já. A opinião dos outros fere muito a gente, e claro que nem todo mundo entende aquilo que nós pensamos. Por isso tem gente que deixa de falar muita coisa que pensa. A incompreensão dos outros chega junto com reprimendas, e não interessa se o que a gente fala é sincero e inofensivo, nem todo mundo vai achar isso. Mas eu falo mesmo assim.
Isso era o que Ed tinha de mais bonito, Felipe pensava. Ele sabia responder as palavras certas mesmo sem saber os detalhes do problema exposto. E ele não exigia sabê-los. Felipe ficou absurdamente contente quando Ed não perguntou mais nada. Ficaram os dois em silêncio olhando para a rua vazia, sentindo ambos um conforto e um contentamento simples que não tinham há um bom tempo. Então o celular de Felipe tocou.

Continua

Repressão

foda-se vc. e qr saber? eu q me foda, tbm. nós temos problemas. ñ estou tentando vestir a personagem de menina fodida na vida. eu ñ sou. ms nós temos problemas sim. e vc ñ tá com a menor vontade de se desdobrar pra abraçar os meus. nem eu os seus. tanto faz.
Recebida: 17:19:10
Hoje
De: Andressa
01692573664

Felipe fechou o celular e colocou-o de volta no bolso, sem afetação pela mensagem. Na verdade até revirou os olhos depois de lê-la. Não é que Felipe não tivesse sentimentos ou consideração por Andressa, e sim que ela simplesmente não entenderia. Ela nunca entenderia. Andressa tem aquela mania de entrar na mentalidade das pessoas e julgar o que elas estão fazendo a partir do motivo pelo qual ela (acha que) sabe que a pessoa está agindo. Acontece que ela se mete a psicóloga e vive convicta de que está certa, mas não percebe que algumas pessoas destoam do pequeno padrão que ela tem de seres humanos. Vez ou outra formam-se por aí seres humanos mais complexos, menos lógicos, do que aqueles com os quais ela sempre conviveu. De fato ela é excelente com pessoas comuns, realmente tem sucesso ao lê-las. Contudo, Andressa nunca conheceu pessoas de fato problemáticas, e por isso não sabe compreendê-las. E isso não significa que Felipe seja um garoto problemático, como Andressa sugeriu por sms. Ser problemático é muito mais profundo, muito mais completo. Mas Felipe não era, digamos, um garoto mainstream, e por isso a psicologia rasa de Andressa não o incluia. Ele, entretanto, entendia Andressa muito mais do que ela jamais saberia - e por isso se colocou afastado.
Felipe estava em uma festa de família, aniversário do avô. Assim que devolveu o celular ao bolso e transpareceu exaustão, pôs-se a inspecionar os arredores para assegurar que nenhum parente havia percebido sua infelicidade. Felipe era muito fechado, mas essa não era a real causa de tamanha preocupação. Era só que dizer a verdade no momento seria embaraçoso demais, além de quase impossível. O menino não estava pronto para dizer o que sentia em voz alta, não estava sequer seguro sobre isso. Além de tudo, ele estava com medo. Olhou para a mesa de salgadinhos: nenhuma prima ou tia por perto, decidiu distrair-se com alguma comida. Andressa sim era bastante padrão. Ela não tinha consciência disso, mas era completamente vítima do sistema. Ela era insegura, sentia necessidade de ser considerada bonita, não suportava críticas e trocava o formato do salto periodicamente como mandavam as revistas. Essa estória de ela ler filosofia ou gostar de compreender pessoas era uma grande fachada, ademais conhecimento nenhum transforma o caráter sem que a pessoa se empenhe para tal - e, como dito, Andressa nem mesmo sabia que ela era um perfeito clichê. Felipe fora namorado dela, por dois ano e três meses. Ele finalmente percebera que estivera enganado quanto a ela, que deixou-se apaixonar pelo estandarte que ela carregava e por uma menina que de fato não existia em lugar algum fora da cabeça dele. Quando Felipe, enfim, deu-se conta disso, a relação perdeu todo o sentido. Talvez esse tenha sido o empurrão fatal para a conclusão que atormentava-o então, mas com certeza não fora o início. Uma única decepção amorosa não seria suficiente, o homossexualidade é profundo e pessoal demais para ser concebido com uma única experiência frustrante.
O ponto é que Andressa não entenderia. Foram namorados por anos e Felipe tinha absoluta certeza de que ela jamais estivera suficientemente ciente da linha de raciocínio dele para compreender algo tão significativo. Andressa não sabia nada sobre ele, assim como não sabia nada sobre pessoas diferentes do padrão. A bem dizer, Andressa não sabia sobre nada que não se referisse a ela mesma ou a matérias escolares. Felipe não podia abrir-se com ela. Além disso, ele sempre esteve muito desconfortável com outros garotos, pela insegurança e pelo medo que sentia ao flagrar-se pensando em coisas que, tecnicamente, não deveria. Não que ele achasse errado ser homossexual, mas ia contra a educação que ele tivera - que ele engolira à força - até então. Com isso, acabou isolando-se por conveniência, e, embora Felipe tivesse sim alguns colegas, nenhum era íntimo o bastante para ajudar com a angústia que ele sentia no momento.
O menino, confuso e desorientado, suportou o namoro até o último instante. Contudo a futilidade e o egoísmo de Andressa estavam sufocando-o, além de sua carência e possessividade, e Felipe definitivamente não estava passando por um momento compreensivo de sua vida, por isso terminou o namoro. Como a descoberta de sua homossexualidade, somado a sua confusão mental, tinham gerado o congelamento completo dos carinhos dele com ela, e como tudo isso deixara-o absurdamente introspectivo e alheio às (constantes) crises dela, Andressa - quase que logicamente - acusou-o de traição. Felipe ficou muitissimo triste com a desconfiança dela, mas decidiu que seria mais fácil e eficaz mentir traição no lugar de confessar sua recente revolução interna. Disso tudo foi que emergiu a vigésima sétima mensagem enfurecida de Andressa, recebida instantes atrás.
Tendo em mãos a estória real, entretanto, fica claro que Andressa, por sua ignorância quanto aos verdadeiros motivos, estava julgando tudo errado. O caso é que Felipe não liga. Ele até reconhece que seria mais justo, mais moralmente correto, contar a ela o que realmente estava acontecendo. Na mente dele até latejava a necessidade de fazê-lo. Mas não hoje. Não ainda. Primeiro ele queria estar certo sobre o que estava sentindo, sobre seus motivos e sua determinação. Antes de qualquer coisa ele queria criar coragem, conseguir forças e compreender seus anseios - e não era um desejo imoral. Depois ele conversaria com a família. Com Andressa. Pouco a pouco sua opção sexual deixaria de ser um grande impasse, um obstáculo, e se transformaria em algo natural e sem peso, em algo indiferente no que tange à personalidade e à essência dele. Ele só não estava pronto ainda. Seria muito difícil para Andressa e para a família efetivamente aceitarem e compreenderem sem julgar aquela "nova" característica. Felipe estava refletindo sobre o enorme obstáculo que figurava assumir-se algo frequentemente incompreendido. Também tinha vagos vislumbres sobre conceitos como liberdade e autenticidade. Felipe pensava um turbilhão de coisas grandes e complicadas, quando um primo, dois anos mais novo que ele e visivelmente diferente do comum, aproximou-se e puxou assunto.

Continua

sexta-feira

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Eu estou meio perdida entre uma embriaguez mental niilista e autodestrutiva e essa coisa de aprender, agir, mudar, criar... Mudo de lado de hora em hora, e estou ficando tonta. A responsabilidade é minha, o futuro é meu, a realização ou a frustração que virá disso tudo será completamente minha. E eu quero que seja realização. Estou decidida, quero pensar e agir, construir coisas das quais eu me orgulhe, quero ser, quero ter o controle. É que aquela preguiça fica me rondando, na espreita, esperando qualquer fiapo de fraqueza, para tentar minha mente. E isso sim é o demônio: a preguiça. Não é uma criaturinha vermelha com rabo de seta sentado no seu ombro, não, o demônio é o seu próprio desânimo, é a falta de persistência, é o cansaço que sussurra dentro da nossa cabeça o tempo todo na tentativa de nos fazer desistir das nossas metas. E vender-se ao demônio é prazer puro por algum tempo, já dizia a bíblia... Mas depois vem a danação. Não, não. NÃO. Decidi: agora quero ser ascese.

quinta-feira

A revolução que eu hei de instigar

Por que estamos nos fechando, nos calando e fugindo? Quanto mais eu aprendo sobre o mundo de hoje - globalizado, urbanizado, industrializado, científico, racional e superlotado -, mais eu percebo que as pessoas estão agindo mal consigo.
Que não soe como propaganda socialista, mas na nossa sociedade as pessoas estão tão presas ao consumo ou ao trabalho que esquecem de zelar por sua própria condição como ser humano. De tão atarefados, percebo que o padrão é que elas ignorem valores pessoais, autoentendimento, as crises existenciais rotineiras e os anseios de mudança para gastarem seu precioso tempo em banalidades estéreis: o trabalho, os filmes e livros massificados, as compras e o transporte coletivo estão roubando-lhes preciosas horas de existência.
O problema é que esse costume vem se transvestindo em algo natural e, o mais preocupante, cultural. O perigo desse crescente desinteresse com questões psicológicas profundas é que os nossos sentimentos não se apagam simplesmente por não receberem atenção. Na verdade eles se agravam, pois, quando não são corrigidos ou canalizados no começo, sentimentos dessa espécie tendem a crescer e a tornarem-se comuns, de forma que, a cada dia que passa, fica mais difícil dar-se conta do absurdo daquela tristeza irracional, cuja tendência é ser considerada normal.
E é por isso que, dizem os jornais, o consumo de calmantes e antidepressivos atual é tão grande. As pessoas ignoram o próprio inconsciente pela dificuldade que representa tentar entendê-lo, e assim seus problemas escapam do controle. Quando esses problemas começam a realmente interferir na rotina de seu sujeito, este procura por drogas psiquiátricas para calarem-no sem gasto algum de tempo ou psicologia. E o resultado é a perda da consciência de si mesmo, da própria existência.
Quando alguém opta por alienar-se de si, a capacidade crítica e de criação dessa pessoa é seriamente danificada. Alguém que prefere fechar-se para os próprios sentimentos não é capaz de ajudar o mundo com novas ideias, não é sequer capaz de agir por alguma causa. Nós, cada um de nós, somos o ser mais importante do universo em nossa própria concepção - nascemos vivemos e morremos conosco, nossa lucidez para com nossa condição é o que há de mais precioso, deus nenhum pode salvar-nos da loucura de não estarmos presentes em nós mesmos. Logo, se abdicamos desse autoacompanhamento, se entregamos nosso estado psicológico ao acaso enquanto escondemos os sinais de que algo precisa ser feito quanto a eles com antidepressivos, por conseguinte, se deixamos de estar presentes em nós mesmos, como podemos estar presente em qualquer outro assunto? Como podemos ter alguma opinião política? Como podemos ter algo a dizer? A desimportância das pessoas consigo, que anda em voga no século XXI, causa mais que alta nos números de depressão e insatisfação: causa também alienação política, o que viabiliza corrupção, manipulação, injustiça - todos fontes de novas crises emocionais subconscientes.
As pessoas têm fechado os olhos para a própria condição na esperança de encontrarem fora de si a realização e o incentivo que as faltam, e aparentemente têm procurado-no no consumo e nos ídolos do rock, e estes, tenho dito, são drogas psiquiátricas providenciadas pelo governo para manter o povo quieto e distante como convém.
Entretanto toda droga para de fazer efeito um dia (não há meia vida que suporte tantas depressões consecutivas), e quando doses suficientes não puderem ser encontradas - o que eu não acho improvável, pois a desesperança, o niilismo e a preguiça existêncial podem reproduzir-se tão rápido quanto bactérias em um meio adequado, e a juventude hodierna é o meio adequado - quando doses suficientes não puderem ser encontradas, restar-nos-ão duas alternativas: enlouquecimento e suicídio, ou, minha preferida, revisão de conceitos.
Quando, finalmente, depois de muita decepção, as pessoas começarem a descobrir que reprimir suas tristezas por praticidade está fazendo-as doentes, quando entenderem que não há nada que resolva o vazio interno senão autobservação, elas irão (serão obrigadas a) dar um basta e enfrentar a si mesmas. Só depois dessa revolução pessoal será possível alguma mudança - mas, para os que dizem que a minha geração não tem valor histórico, eu peço mais algum tempo. (revoltas em Londres, revoltas no Chile, revoltas no Mundo Árabe... evite julgar um ser humano antes que ele amaduresça, é tão injusto...)

Uma instrospecção de um professor que hoje ganhou minha estima:
"A mente é a droga. Pensem, imaginem, que dá barato. Mas tomem cuidado, tudo tem uma contraindicação..."

domingo

Um papel que achei no chão

Queria começar dizendo que é bem mais fácil quando você é bonita. Não digo apenas pelo meu emprego de entregar flyers no semáforo, mas por tudo. Ser bonita facilita a vida: você pode cortar fila em casos de extrema urgência, respondem com mais vontade quando você pede informações na rua, conseguir favores torna-se mais fácil e as pessoas se aproximam com mais frequência. Não dá pra negar que o mundo é mais simpático com quem é bonito. E eu sou bem feia.
O que existe no interior de cada um é o mais importante, mas não se finjam inocentes: as aparências são essenciais sim e todos nós somos primeiramente julgados por elas. Mesmo porque é o interior, e rápido como as pessoas olham umas pras outras hoje em dia - afinal, existe gente demais -, ninguém faz muito mais que ver superficialmente a superfície. E não foi pleonasmo.
Quanto a escola, preciso desabafar, a escola é o inferno para quem não nasceu bonito. Os apelidinhos e o tal do bullying eu não vou nem me preocupar em descrever porque eu acredito que todos que já passaram pela escola - feios ou não - sabem exatamente do que se trata. Mas alguns detalhes somente nós, feios, sabemos de fato. A desconfiança dos professores, que secretamente acham-nos sempre mais plausíveis de culpa pelas taxinhas na cadeira ou qualquer ato que o valha. A chacota do sexo oposto, sempre pronto para humilhar nossos anseios. O espelho do banheiro feminino. O julgamento cruel e escancarado de todos para tudo o que você faz ou diz. As comparações...
E então o feio cresce, sai fora da escola, arruma um emprego e acha que tudo vai melhorar - mas é óbvio que seus chefes continuaram julgando-o, e as pessoas continuaram negando-se a pegar seus folhetos, e perder-se em um bairro nobre será sempre um grande problema.
Nós feios fomos fadados à vergonha, a vivermos escondidos e a passarmos ligeiros como animais, fomos rebaixados em termos existenciais, e temos que aceitar diariamente o nosso legado. Você, bonitinho, pode achar que é exagero, mas eu digo que não é. Por nossa desgraça existencial não ser assim tão explícita, quem não partilha do sentimento tende a achar que estamos mentindo. O ponto é que nada disso é perceptível exceto para aqueles que o sentem por experiência própria. É impossível explicar corretamente um preconceito que o interlocutor nunca sofreu. A causa do nosso sofrimento não é visível, mas ainda assim é concretamente sensível e sofrível e enorme para os que estão sob seu prisma de incidência.
Mas, acreditem ou não no suplício de ser feio, não é sobre isso que quero tratar por aqui. Quero falar sobre preconceito. Eu concluí o ensino médio, tenho e hoje dezenove anos, trabalho como estagiaria em uma pequena firma e estou matriculada em um curso profissionalizante. Entregar flyers é um trabalho extra para financiar um carro. Acontece que a obsessão humana pelas aparências já me fechou muitas portas, e eu não vou manter isso no anonimato. Empregos, relacionamentos, amizades, sucesso. Porque ninguém quer que alguém feio represente algo grande e importante, como ser oradora da turma, e muito menos se esse algo envolve dinheiro, no caso de uma empresa. Qual parte de ser gorda invalida-me para ser secretária? O mundo está ficando cego tamanha a importância que guardam ao âmbito visual, pois a visão a qual me refiro é aquela que absorve o sentido do quadro, e não apenas a fotografia. Eu não tenho o arquétipo propagado pela moda, mas minha fisiologia e meu espírito são iguais aos de todo mundo, e eu desejo e choro e sorrio e sonho e sinto tanto quanto qualquer um.
Semana passada eu estava entregando os panfletos quando cheguei em um palio cinza. Como eu estava andando entre as duas filas, entreguei-o para uma garotinha que tinha lá seus seis anos e estava ilicitamente no banco do acompanhante, de vidro escancarado, provavelmente divertindo-se a valer com o vento e a paisagem. Quando eu entreguei o papel, ela me olhou e sorriu com a maior sinceridade. Acho que ela ainda não sabia o que se convencionou que é feio, por isso foi capaz de me olhar nos olhos e sorrir com espontaneidade. E, sabem?, aquilo me motivou. Afinal, eu não seria feia se ninguém tivesse imposto um padrão para isso. E não existe um padrão além desse inventado. Se uma criança que ainda não aprendeu-o pôde olhar-me sem dó e sem julgamentos, então talvez quando as pessoas conseguirem desaprender as regras que separam beleza e feiúra, elas possam olhar-se como a garota do palio cinza.
...Mas não é uma tarefa simples.
Acontece que, depois daquele dia, eu decidi que vou ao menos tentar fazer algo a respeito. E foi por isso que escrevi esse flyer, que você está lendo. Encontrei nisso uma forma de ativismo ideólogico e não vou abandoná-lo, independente de quantas pessoas amassem e lancem ao chão perante os meus olhos esse texto que escrevi com sentimento e imprimi com meu dinheiro - vou continuar distribuindo-os em nome do bem estar que senti quando aquela menina me olhou. Porque eu desejo que todos os feios sejam olhados daquela forma um dia. E também os deficientes, os errantes e os viciados. Eu desejo um mundo em que as pessoas se olhem sem subliminaridades. Eu anseio por um mundo sem preconceito, e por isso vou continuar imprimindo e entregando panfletos.
Fico muito feliz por você ter lido esse texto no lugar de tê-lo amassado e jogado ao chão ou ignorado no tapete do carro; já que ele é extenso e não tem joguetes publicitários para prender sua atenção: acontece que normalmente as mensagens mais importantes não vêm em tinta fluorescente ou letra tamanho 36... Repasse a mensagem em nome de um mundo melhor.

sábado

O problema das cidades grandes

Olhei pelo parabrisa, as luzinhas da cidade estavam todas piscando. Pensei em um flashmob gigantesco, em invasão alienigena, em energia das fadas; depois pensei na fumaça de algum carburador. De qualquer forma, se fosse haver algo grande eu teria visto no jornal. Esse é o problema das cidades grandes, acreditamos mais nos jornais que em nossos olhos. O sinal abriu, acelerei. Hoje é domingo.
Não estou muito certo de que isso interessa, mas meu nome é Luis Otávio. Nome estúpido, não? Era um saco chamar Luis Otávio no fundamental. Pior ainda era a minha mãe, senhora Ana Luiza, que obrigava o mundo inteiro a pronunciar meus dois nomes. Era até entediante ser chamado com toda aquela pompa desnecessária. Acho que ela queria que eu fosse importante. Importante e íntegro. É, porque nome composto é coisa de gente reta, bem resolvida, com caráter polido e carreira decente. Voce já viu algum mendigo de nome composto? Algum viciado? Não. E se eles, por infelicidade do destino, têm mesmo um nome composto, logo abdicam de um deles ou substituem-nos por algum apelido tosco - a verdade é que nome composto é uma coisa imponente, é preciso muita dignidade para que lhe chamem pelos dois nomes.
O triste é que eu não mereço os dois nomes. E acho que decepcionei minha velha. Eu sei que depois do Luis Otávio todo mundo aí começou a imaginar um cara alto, de ombros largos, camisa de manga comprida com gravata vermelha, e meu carro foi logo jogado no patamar de um importado preto, polidíssimo e brilhante, com os vidros fechados e o ar condicionado ligado. E erraram. Quer dizer, minha camisa é mesmo de botão, de mangas curtas, mas de botão - só que tem o logotipo da empresa onde eu trabalho ridiculamente bordado no bolso do lado direito. E é azul clara. E meu carro é branco, e sem brilho. Um gol 93, se alguém realmente ainda está interessado na minha estória.
Bom, no caso de alguém estar, deve querer saber para que eu estou uniformizado em um domingo. O caso é que eu não voltei para casa desde o fim do expediente de sexta feira. Ah é, eu sou o menino do xérox. Entretanto isso não deve ser analisado como extrema rebeldia, pois de fato não tenho esposa, filhos, cachorros ou qualquer coisa que o valha esperando por mim em casa. Minha casa é medíocre. Quase uma quitinete. E sempre muito mal organizada. minha mesa de centro - era uma dessas bem vagabundas - quebrou uns meses atrás, quando um amigo trôpego sentou-lhe em cima. Desde então, minha mesa de centro são três latas de tinta e uma madeira quadrada - que tive o admirável trabalho de colar nas latas - com uma toalhinha. Isso mesmo, uma toalhinha! Tanta desgraça nesse mundo, e a minha mesa de latas de tinta tem toalhinha. Ai. ai, e é rendada... Bom, mas voltando ao fato de eu ainda não ter voltado para casa: estava de saco cheio. Ainda estou de saco cheio, só que preciso ir visitar minha mãe. A família inteira vai estar lá, e eu estou nojento e fedendo a bebida. Mesmo sabendo que a velha não iria ligar, estou indo em uma loja, aí vou passar em casa e só depois vou para a casa dela. É que ela está bem doente. Na pior, se querem saber. Eu vou vê-la aos domingos e às quartas, mas hoje a reunião se estendeu para a parentada toda, como que num ritual de despedida. Não que estejamos preparados para a morte dela. É que quando uma coisa é iminente, não interessa você estar pronto ou não, e sim preparar tudo para que aconteça da melhor forma. Se é que tem alguma forma boa de morrer. É que a minha velha é um tanto emotiva, então nós queremos que ela tenha a chance de dizer o que quiser para quem quiser, por via das dúvidas. Nesse ponto da narrativa eu bem poderia começar um monólogo sobre a doença da minha mãe, explicar todos os pormenores, descrever a personalidade das minhas tias gordas e os quadros da sala da casa, mas eu tou com preguiça, então vou apenas contar uma estória, de quando eu era menino.
Eu tava lá, no quintal, brincando com o barro - é que nós tinhamos uma horta. Minha velha é bem conservadora e por isso gosta de plantar a própria cebolinha, e tal. Hoje o espaço abriga uma grama ordinária, três cadeirinhas de ferro e uma mesa, minha velha também gosta dessa lengalenga de tomar chá e conversar - enfim, brincando com o barro, aí ela apareceu. Eu já tinha passado a lama até na cara, estava imundo, e quando ela chegou eu tive certeza de que ia tomar o maior esporro. Mas ela falou (eu lembro, certinho) "Luis Otávio, o jantar já está pr-- oh. Luis Otávio, vá tomar um banho para comer, meu filho." E só. Quando eu passei por ela, beijou-me a cabeça enlameada. Nosso piso era branco, e eu fiz a maior meleca com as minhas pegadas marrons, mas quando eu voltei pra comer já estava tudo muito branco de novo. Minha velha é dessas que amam a gente até quando estamos sujos de barro no meio da cozinha branca.
E agora, vejam só, eu estou meio triste. Quer dizer, ela tá lá, a beira da morte, e eu sou o garoto do xérox. Ela queria tanto me ver com o tal carro importado e a camisa de manga comprida! Eu sei que queria. Niguém bota "Luis Otávio" como nome do filho assim, à toa, sem pretensão... E eu tô fedendo. Terminei meu terceiro colegial capengando, arrumei um emprego de vendedor, e enganei todo mundo com essa de "quero só juntar um dinheirinho, mas ano que vem eu faço faculdade". Era sempre ano que vem. Até que param de perguntar da faculdade. É que eu nunca fui muito certo sobre o que queria fazer, e, pra ser sincero, eu também nunca quis muito. Quando eu percebi que já era tempo, e isso foi lá pelos 23, arrumei um jeito de sair de casa. E aí fui pra aquele moquifo, com toalhinha na mesa de centro, e não saí até hoje. Pra vocês verem até onde chega a merda da acomodação de um ser humano.
Meu vocabulário não é dos melhores, não tive curso superior, também não arrumei garota nenhuma, e assim fui ficando sem inspiração. Acabou que a vida foi passando e eu encostei num canto. Sei lá. Mas acontece que não tá nada bem. Perdi contato com os amigos do colegial (mas também eu não tinha muitos, espinhudo e encurvado como eu era), aliás, aposto que estão bem de vida hoje, os filhos da puta, a maioria de carro importado e camisa de manga. Mas não ter feito faculdade nem é o meu recalque não. Meu recalque é ter sido tão alheio. Eu podia ter dedicado a minha vida a algo importante, sabe? Não necessariamente a uma profissão, mas sei lá, podia ter virado hippie, podia ter feito algo de diferente nesse mundo, em vez de ficar apodrecendo com cerveja e televisão naquela quitinetezinha escrota. E, garoto do xérox? Mas que droga, qualquer coisa é mais vivo que garoto do xérox. Não que eu seja idiotinha o bastante para desprezar esse tipo de emprego, na verdade eu respeito muito quem rala pra ganhar a vida, seja como garoto do xérox ou como gigolô. Só que gigolô ainda teria mais emoção. Sabe? Sei lá. Garoto do xérox é monótono. Eu não queria ser milionário, mas também não queria essa vida de tédio. E, ah, a minha velha merecia mais que um garoto do xérox.
Saí do trabalho na sexta e fui para um boteco. Sou meio fraco para bebidas, se querem saber. No terceiro copo minha barriga começa a doer, e quase sempre acabo com diarreia. Mas adoro ficar ébrio. Bom, bebi uns vários copos, não comi nada, vomitei de leve, e aí bebi mais uns. Depois rumei para um puteiro. Eu sei que é triste precisar de um puteiro, e depois de vomitar ainda, quase que uma foto da decadência, mas cara, eu não tava nem aí. É por isso que eu curto ficar ébrio, é que então eu consigo não estar nem aí.
Quando cheguei lá, caramba, que tristeza que me deu. Odeio bêbado chorão, mas não deu, chorei. Umas putas gordas, outras meio pelancudas, credo. Mas arrumei uma até que boazinha. O legal mesmo foi que não transei. No quarto, continuei chorando, como uma menininha, e, pasmem, ela foi compreensiva. É lendário encontrar uma puta compreensiva. Mas essa ouviu a minha estória toda, falou uma ou outra coisa - que, alias, nem eram absurdas. Acho que no final das contas ser puta deve ensinar bastante sobre as pessoas... - e me deixou chorar. Aí eu paguei, fui beber mais pois estava voltando a ficar sóbrio e isso não era confortável, e aí fui para uma praça. O resto nem é importante. Dormi por lá, continuei bebendo e me odiando no dia seguinte, liguei pra um amigo, conversamos, ele foi embora e eu continuei na minha fossa, dormi em outra praça. Hoje de manhã eu cheguei a uma bela conclusão: a culpa é minha sim, mas a cagada não é irreversível. Tenho um empreguinho chato e uma vida chata, e isso é chato, mas se eu continuar nessa depressão boiola vou acabar é me matando. Decidi que vou passar numa loja granfina, comprar uma camisa de manga comprida e uma gravata, tomar um belo banho, fazer a barba e vesti-la; vou arrumar minha mala e depois vou lá ver minha mãe. Aí eu converso com as tias gordas, ajudo na cozinha, sorrio o tempo inteiro, dou um beijo na testa da minha velha e digo que amo muito ela. E aí eu vou embora.
Tem um lugarzinho, numa cidade litorânea a umas duas horas daqui, onde eu sempre quis morar. É um morro com vista pro mar, que não é ocupado. Vou fazer uma cabana por lá, e ficar alguns dias. Até alguém vir me mandar sair. Depois eu junto minhas coisas, volto pra cá, e se eu não for demitido, continuo sendo o garoto do xérox. Só que vou usar o dinheiro pra um curso superior. Administração, quem sabe? E já tenho a camisa e a gravata, e tal. A vida na cidade é uma bosta. Ninguém tá nem aí, mesmo sóbrios. O negócio é que ou você cala a boca e vai fazer o que tem de fazer, do tipo faculdade e puxar saco da chefia, ou você fica sendo o garoto do xérox. Esse é outro problema das cidades grandes, acreditamos mais num diploma que na pessoa que existe atrás dele...

terça-feira

Nossas páginas

"People are just people
They shouldn't make you nervous
People are just people like you..."
(Regina Spektor, Ghost Of Corporate Future)


Sempre ouvi dizer que todos somos legais até a segunda página. Estou começando a discordar. Afinal, todo mundo é legal exatamente depois da segunda página - na máscara somos todos clichés. É inegável que nas primeiras conversas com alguém estejamos todos encenando um papel, fingindo sermos o que melhor nos aprece, ou mostrando a nossa face mais trabalhada. E essa parte da relação é tediosa. Mais tarde, quando tirados os saltos e as maquiagens, é que a pessoa começa a mostrar quem ela realmente é. Somente lá pela quarta página é que podemos descobrir-lhe as reais qualidades e defeitos, sentir algo em relação a ela e ter um esboço de opinião a respeito. Antes disso, é tudo raso e fútil.
Mesmo porque julgar a pessoa até a segunda página é a maior injustiça. E se a casca dela não condiz com a sua? Isso não deveria significar que vocês não se darão bem. Quem já foi forçado a conviver com alguém cuja máscara lhe fosse repulsiva talvez concorde: depois da segunda página, quando não há mais tribo, classe social, time ou partido político, todos nós somos muito parecidos e capazes de afinidades. As primeiras páginas só servem para seccionar as pessoas, algo que eu acho extremamente inútil e triste. A diversidade da mentalidade humana é o que mais me encanta, não consigo concordar com a ideia de fugirmos de pensadores à priori diferentes.
Mas não posso fechar meus olhos ao fato de que estar rodeado por semelhantes gera conforto e é essencial, já que do contrário nos sentimos deslocados e frágeis e isso é muito desagradável. Insisto, porém, em que não passa de uma questão de ponto de vista: só iremos nos sentir estranhos longe de máscaras com as quais nos identificamos enquanto classificarmos as pessoas por tais máscaras. Uma vez entendido que essa casca é dispensável e estando-se decidido a olhar mais fundo, nós podemos compreender e sermos compreendidos por qualquer um. Sentirmo-nos deslocados é um erro da cultura imposta quando entendemos que o ser humano é nada além de um ser humano, em qualquer lugar. Aceitar e ser aceito só depende de lermos o trecho inteiro.

domingo

"Os indivíduos

devem matar-se uns aos outros porque os interesses da Nação o exigem; devem ser educados no sentido de cuidarem dos fins e desprezarem os meios, porque os mestres-escola não se fazem esperar e não conhecem outro método; devem viver em cidades, devem ter tempo para lerem os jornais e irem aos cinemas, devem ser instigados a comprarem coisas de que não precisam, porque o sistema industrial existe e precisa ser mantido em atividade constante; devem ser coagidos e escravizados, porque, do contrário, poderiam pensar por si e causar embaraços aos seus governantes.
O sabat foi feito para o homem. Mas o homem agora se comporta como os Fariseus e insiste em que ele é que é feito para todas as coisas - ciência, indústria, nação, dinheiro, religião, escolas - que foram realmente feitas para ele. Por quê? Porque tem tão pouca consciência de seus próprios interesses como ser humano, que se sente irresistivelmente tentado a sacrificar-se por esses ídolos. Não existe outro remédio a não ser tornamo-nos conscientes dos nossos próprios interesses como seres humanos e, uma vez conscientes, aprendermos a agir em conformidade com essa consciência. O que significa aprendermos a fazer uso de nós mesmos e aprendermos a dirigir nosso espírito."

Anthony Beavis, em Sem Olhos em Gaza / Aldous Huxley