Quanto tempo até eu voltar a ser minha? Quando tempo dessa
névoa? A criatividade chega no escuro. Uns três anos atrás eu estava em um bar,
e um cara me perguntou:
- Se você tivesse certeza do que quer, pra onde você iria agora?
E eu me lembro de ter respondido que iria pra longe, pra bem longe daqui. Essa cidade pequena, com gente tacanha, que cuida da vida dos outros e amarra as portas dos guarda-roupas velhos com barbantes de soberba e julgamento. Guarda-roupas lotados de trapos, desnecessários, mas sempre ali, guardados através dos anos, assim como as ideias deles.
Eu iria pra longe, pra alguma capital, lá onde as pessoas não se importam com a vida dos outros porque estão tomados demais pela loucura de manter a sua, e o trânsito, e a variação do dólar. Quem sabe por lá minha sexualidade não fizesse diferença. Ou o meu cabelo, curto demais para uma dama, ou as minhas tatuagens, ou a minha ânsia de viver algo mais sincero do que a mentira de um casamento sustentado pela asfixia das tradições, um emprego medíocre que vai me consumir o tempo, a vida, e do qual eu não gosto, uma casa vistosa, que eu vou decorar, e encher de louças bonitas pra mostrar às visitas, louças que eu não sei usar ou manusear, visitas que não querem realmente estar me vendo, e tudo isso para um café às três da tarde com tios ou sogra – o que muda? – os quais na verdade preferiam, assim como eu, estarem longe, longe dali, anos atrás.
Mas os anos passaram, e não, eu não sai dali. Eu nem tentei sair dali. Também parei de tentar convencer as pessoas sobre a necessidade de sair dali nas conversas nos bares. As cidades pequenas nos impregnam de uma letargia da qual não se pode fugir. Embora as grandes, li em um livro, nos mortifiquem com seus prédios cinza e sua apatia, e disso a gente também não possa fugir, porque deixa os pulmões pequenos, duros e pouco funcionais (igual ao cigarro). Na verdade, essa irrealidade faz parte do nosso tempo. A maquinaria e a ficção científica fizeram tudo tão polido e tão brilhante, tão perfeito, tão extasiante, que os sentimentos e as delicadezas das coisas se retiraram – formando um ambiente mais limpo e matemático. E o que sobrou foi isso. Gente sem cor, sem força, alheia.
Mas gente feliz! Sim! Gente feliz!, nos empregos estressantes, nas louças caras, nos cafés com a família às três da tarde. Gente feliz com a tradição, com a ordem e a familiaridade da ordem. Gente feliz, incapaz de sentir qualquer coisa real, inclusive aquilo que alguém um dia chamou felicidade. Mas sem crise. Para isso inventaram as pílulas, magia psicotrópica mais magistral que a dos antigos (cheia de rituais e selos em prata e complicações). As coisas agora são simples, exatas, diretas.
Mas mesmo nunca tendo tomado uma dessas pílulas, eu me sinto como que amortecida, da mesma forma que elas me deixariam. Talvez seja efeito placebo da modernidade. Me sinto vazia, distante, distante – mas não dessa cidade, não desse tempo, não desse absurdo todo. Distante apenas de mim, do real, do minimamente possível num mundo onde o sublime ainda pudesse existir e fazer sentido. Meus sentimentos e minha vontade, já não são meus. Perderam-se no ar, junto ao cheiro da chuva e dos carburadores. Eu não me controlo, não me guio, nem sequer me percebo.
Talvez, e eu acho que sim, essa seja a forma como todas as pessoas (a maioria delas) se sente hoje em dia. Mas com a diferença de não prestarem atenção o suficiente para descobri-lo. Eu acredito que o comum é isto: essa distância entre o corpo e a personalidade, entre a sobrevivência física e os sonhos, os sentimentos nobres, as atitudes idealistas, heroicas e românticas. E é por isso que ainda não saí dessa cidade. É por isso que já não falo a ninguém sobre esse tipo de pensamento que me assalta. A ciência evoluiu de tal forma que anulou, por baixo dos panos, aquilo que não pôde entender. E nós aceitamos contentes, afinal, a ciência está sempre certa.
Eu realmente queria conseguir sair dessa cidade. Queria conseguir largar aquele meu emprego, explicar para os meus avós que eles desperdiçaram suas vidas inteiras e continuam gastando da forma errada os últimos minutos que lhes restam. Queria explicar para a minha amiga, para minha apaixonante amiga, que se ela não morrer de anorexia, vai morrer de modernidade, e que eu a amo, Que Eu a Amo, e que nós poderíamos fugir juntas dessa cidade pequena e dessas mentes confusas. Mas ela também é confusa. A doença, as revistas de moda, seus pais, os sonhos de seus pais, seu emprego tedioso, seus estudos, seu futuro garantido... Acho que nunca vou conseguir deixar essa cidade.
- Se você tivesse certeza do que quer, pra onde você iria agora?
E eu me lembro de ter respondido que iria pra longe, pra bem longe daqui. Essa cidade pequena, com gente tacanha, que cuida da vida dos outros e amarra as portas dos guarda-roupas velhos com barbantes de soberba e julgamento. Guarda-roupas lotados de trapos, desnecessários, mas sempre ali, guardados através dos anos, assim como as ideias deles.
Eu iria pra longe, pra alguma capital, lá onde as pessoas não se importam com a vida dos outros porque estão tomados demais pela loucura de manter a sua, e o trânsito, e a variação do dólar. Quem sabe por lá minha sexualidade não fizesse diferença. Ou o meu cabelo, curto demais para uma dama, ou as minhas tatuagens, ou a minha ânsia de viver algo mais sincero do que a mentira de um casamento sustentado pela asfixia das tradições, um emprego medíocre que vai me consumir o tempo, a vida, e do qual eu não gosto, uma casa vistosa, que eu vou decorar, e encher de louças bonitas pra mostrar às visitas, louças que eu não sei usar ou manusear, visitas que não querem realmente estar me vendo, e tudo isso para um café às três da tarde com tios ou sogra – o que muda? – os quais na verdade preferiam, assim como eu, estarem longe, longe dali, anos atrás.
Mas os anos passaram, e não, eu não sai dali. Eu nem tentei sair dali. Também parei de tentar convencer as pessoas sobre a necessidade de sair dali nas conversas nos bares. As cidades pequenas nos impregnam de uma letargia da qual não se pode fugir. Embora as grandes, li em um livro, nos mortifiquem com seus prédios cinza e sua apatia, e disso a gente também não possa fugir, porque deixa os pulmões pequenos, duros e pouco funcionais (igual ao cigarro). Na verdade, essa irrealidade faz parte do nosso tempo. A maquinaria e a ficção científica fizeram tudo tão polido e tão brilhante, tão perfeito, tão extasiante, que os sentimentos e as delicadezas das coisas se retiraram – formando um ambiente mais limpo e matemático. E o que sobrou foi isso. Gente sem cor, sem força, alheia.
Mas gente feliz! Sim! Gente feliz!, nos empregos estressantes, nas louças caras, nos cafés com a família às três da tarde. Gente feliz com a tradição, com a ordem e a familiaridade da ordem. Gente feliz, incapaz de sentir qualquer coisa real, inclusive aquilo que alguém um dia chamou felicidade. Mas sem crise. Para isso inventaram as pílulas, magia psicotrópica mais magistral que a dos antigos (cheia de rituais e selos em prata e complicações). As coisas agora são simples, exatas, diretas.
Mas mesmo nunca tendo tomado uma dessas pílulas, eu me sinto como que amortecida, da mesma forma que elas me deixariam. Talvez seja efeito placebo da modernidade. Me sinto vazia, distante, distante – mas não dessa cidade, não desse tempo, não desse absurdo todo. Distante apenas de mim, do real, do minimamente possível num mundo onde o sublime ainda pudesse existir e fazer sentido. Meus sentimentos e minha vontade, já não são meus. Perderam-se no ar, junto ao cheiro da chuva e dos carburadores. Eu não me controlo, não me guio, nem sequer me percebo.
Talvez, e eu acho que sim, essa seja a forma como todas as pessoas (a maioria delas) se sente hoje em dia. Mas com a diferença de não prestarem atenção o suficiente para descobri-lo. Eu acredito que o comum é isto: essa distância entre o corpo e a personalidade, entre a sobrevivência física e os sonhos, os sentimentos nobres, as atitudes idealistas, heroicas e românticas. E é por isso que ainda não saí dessa cidade. É por isso que já não falo a ninguém sobre esse tipo de pensamento que me assalta. A ciência evoluiu de tal forma que anulou, por baixo dos panos, aquilo que não pôde entender. E nós aceitamos contentes, afinal, a ciência está sempre certa.
Eu realmente queria conseguir sair dessa cidade. Queria conseguir largar aquele meu emprego, explicar para os meus avós que eles desperdiçaram suas vidas inteiras e continuam gastando da forma errada os últimos minutos que lhes restam. Queria explicar para a minha amiga, para minha apaixonante amiga, que se ela não morrer de anorexia, vai morrer de modernidade, e que eu a amo, Que Eu a Amo, e que nós poderíamos fugir juntas dessa cidade pequena e dessas mentes confusas. Mas ela também é confusa. A doença, as revistas de moda, seus pais, os sonhos de seus pais, seu emprego tedioso, seus estudos, seu futuro garantido... Acho que nunca vou conseguir deixar essa cidade.