"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

quarta-feira

Amor

Quatro horas da manhã, a música ricocheteava na cabeça junto com pensamentos incertos e um tipo de enjôo. A bruma de nicotina que imperava por todos os lados estava começando a sufocá-la, então resolveu sair de lá. Das duas amigas com quem ela viera, uma já havia ido embora, acompanhada, e a outra parecia divertir-se a valer com o assunto da roda em que estava. Decidindo não atrapalhar, ela saiu sem se despedir. O plano era ir para casa, tomar um longo banho e dormir sozinha, na paz que domina uma mente depois de algumas horas de boate e tumulto.
O pub onde estavam ficava em uma ruela perdida entre a periferia nobre e a marginal, e três ou quatro ruas acima existia uma praça, onde ficavam os mototáxis. Enquanto saia do lugar, Brígida olhou para as paredes prestando atenção aos detalhes. O corredor apertado que levava à saída tinha paredes de tijolos, decoradas com espelhos manchados de margens extravagantes e folhetos de shows envelhecidos, pendurados e colados aleatoriamente. Abriu a porta e do lado de fora observou que, para quem não conhecesse o lugar, poderia passar por ali todos os dias sem nunca percebê-lo. Aquele mistério decadente de boate alternativa era realmente bonito, mas Brígida preferia o próprio quarto. Boates, por mais bela que fosse a decoração, eram sempre abafadas e sem nexo, absolutamente entediantes até que a consciência fosse entorpecida, e desde que a garota decidira não mais se amortecer com álcool ou o que fosse, a música passara a ser patética. Suas amigas, no entanto, achavam que ela precisava gostar desse tipo de coisa pra ser normal, e ser normal significava ser feliz, por isso forçavam-na a acompanhá-las de tempos em tempos. Brígida realmente precisava de ajuda, uma pena que as outras duas não entendessem que pubs não eram a solução. Chegou na praça e viu a casa velha com sofás na varanda onde os mototaxistas aguardavam pela clientela ou pelas ligações, e dirigiu-se ao único homem que estava lá. Foram até a moto, colocaram o capacete, subiram e ele deu partida. Quinze minutos mais tarde a moça percebeu que eles estavam se afastando da sua casa ao invés de se aproximarem, e perguntou se o homem realmente sabia a localização. Ele acelerou e não respondeu, então Brígida começou a ficar apreensiva. No segundo falsear devido à curva realizada bruscamente ela segurou em sua cintura, com medo, retirando as mãos tão logo quanto possível. Foi quando começou a argumentar que ele podia deixá-la ali mesmo, mas claro que em vão. Já estavam em uma estrada que levava à saída da cidade, e ela nem sequer teria como voltar caso fosse deixada ali. Tentou convencê-lo de que estavam tomando o caminho errado e pedir para voltarem, debalde. Depois de muita insistência ela gritou por socorro, e a resposta dele veio na forma de uma derrapada perigosa, depois da qual parou a moto. Ela aproveitou a deixa, incerta de estar tomando a melhor decisão, e correu. Havia campos dos dois lados, e uma estrada longa demais para chegar-se a qualquer lugar a pé por meio dela, então a única alternativa era pular uma das cercas e correr. Não era uma ideia promissora, Brígida podia perceber.
Saltou e correu, com capacete e tudo, tão rápido quanto era capaz. Ouviu o baque dos pés do rapaz batendo no chão depois de pular também a cerca, e ouviu-o começar a correr também. Era uma plantação baixa, sem árvores, não havia possibilidade de se esconder, mas ela podia ver a divisão de arame farpado para a fazenda ao lado, onde o mato e algumas árvores dariam-na maiores chances. Já sem fôlego e desesperada, pulou a segunda cerca, e ainda podia ouvir o impacto dos pés dele na terra, próximo o suficiente para alcançá-la. Logo depois de pular, começou a andar abaixada e depois a rastejar, na esperança de despistá-lo. Escondeu-se cerca de dez metros à frente, entre os pinheiros clonados que cresciam em uma espécie de bosque geometricamente programado. Entrou vários metros em tal bosque, então parou, sentou-se junto a uma árvore e tentou controlar a respiração ofegante, a fim de encobrir o barulho. Seus olhos estavam arregalados pelo terror e pela adrenalina, e a imaginação tão tomada por suposições e pensamentos de fuga que, não fosse o seu corpo em estado crítico de alerta, ela não poderia ouvir nada além de si.
Depois de um tempo que ela jamais saberia medir com certeza, ouviu os passos do homem. A respiração dele estava tão ofegante quanto a dela momentos atras, e assim sendo ele deslisou por um tronco e sentou-se exatamente como ela fizera. Mais algum tempo se passou enquanto o terror a torturava, então Brígida ouviu-o levantar-se. Lembrou-se da religião que a mãe lhe ensinara quando criança e pensou em rezar, mas logo compreendeu que, por ela não ter se agarrado a isso durante seus vinte e cinco anos, tal experiência agora não traria conforto. Como seja, ouviu passos humanos se aproximarem e praguejou, sem saber se era um castigo divino ou pura doença do mundo; levantou-se e correu mais por entre as árvores.
O rapaz ouviu o ruido, e a luz do luar e das estrelas, combinados a sua pupila já devidamente adaptada e a sua audição excitada pelo momento, permitiram-no descobrir para qual lado ela fora. Mais alguns passos e ele a encontrou, agarrou e, apesar da luta e dos gritos, jogou-a ao chão.
Não houve mais voz depois daquilo. Apenas as mãos dele e o olhar dela, de animal enfurecido, de humano ultrajado, de um ódio mais antigo que a própria existência e que perfurava-o mesmo que ele continuasse desviando seus olhos em sua agressão desesperada. Brígida lutou enquanto ele rasgava-lhe a blusa, e lutou muito mais quando suas mãos enfiavam-se repulsivamente por baixo da saia, mas quando percebeu que nem mesmo seu instinto de sobrevivência seria suficiente para igualar-lhes a força física, visto que ela era pequena e delicada, e ele, um homem forte, ela decidiu apelar para uma outra força - a dos seus olhos e raciocínio.
Parou completamente de resistir e fechou os olhos ensandecidos, amolecendo pernas e braços de tal forma que ele aproximou o rosto do dela para checar se havia desmaiado. Não é um estuprador experiente, ela pensou, pois se soubesse o que estava fazendo jamais aproximaria-se de sua boca - a circunstância merecia uma mordida de arrancar pedaço. Contudo, ela sabia que estava presa e que agredir-lhe apenas tornaria o ato mais repleto de prazer para ele. Afinal, tal atitude era a expressão de uma grande fúria e muito ódio, gerados por algum mal estar de proporções dantescas - e quem sente fúria e ódio, certamente gosta de receber fúria e ódio em troca, e a isso responder com mais fúria e mais ódio. Para atingi-lo como era preciso, a atitude dela deveria ser oposta.
Com essa conclusão (que levou apenas algumas frações de segundo) Brígida virou vagarosamente o rosto e beijou-lhe a face. Ele acelerou seu rítmo furtivo, e ela beijou-lhe a boca. Beijou tão docemente como se o amasse, lentamente, com lábios - inacreditavelmente - quentes e macios, e repetiu algumas vezes até que ele se rendeu. O movimento cessou e ele abriu a boca, ela introduziu sua lingua e imprimiu nos movimentos dessa todo o carinho que jamais fora capaz de expressar por um ser humano. Os lábios dele, até então imóveis, começaram a acompanhá-la, delicadamente, e suas ancas, de frenéticas que estavam, passaram a um movimento terno e lento como o beijo que trocavam. Ela finalmente abriu os olhos e deparou-se com os olhos dele, vidrados, com sobrancelhas em um misto de arrependimento e adoração, e uma lágrima escorrendo pelo rosto. Brígida percebeu pela primeira vez que ele era um moço muito bonito, mesmo naquela escuridão torpe e úmida. Passou suas mãos pelas costas dele, e ele se contraiu ao notificar que estavam muito geladas. Êxtase. O carinho dela se transformou em um aperto de unhas livre de julgamento. Ele abraçou-a, e depois levantou-se.
Quando se separaram, ela imediatamente começou a se recompor e tampar. Ele procurou por alguma coisa na bolsa que trouxera, e que agora encontrava-se jogada próxima a eles, enquanto chorava convulsivamente. O rosto dela não tinha expressão alguma. Finalmente, ele encontrou. Tirou da bolsa um revólver, olhou para cima e disparou. Dentro de sua própria boca. Ela gritou e se encolheu.
Uma pena nunca ter sabido o que despertara nele aquele ódio e aquela fúria. Não obstante, ele a havia ajudado. Nunca mais Brígida pisaria em uma festa, mas o conforto de seu quarto simplesmente não poderia voltar a ser deprimente e enlouquecedor como fora até então. Ela nunca mais se sentiria oca por sofrer sem motivo. Aquele homem com olhos de mel fora a única pessoa capaz de ajudá-la, e ela seria eternamente grata. Pegou a bolsa dele, o capacete, a chave da moto - que estava no bolso da calça jeans que ele sequer levantara -, e saiu. O banho quente e o vazio mental seriam muito mais completos hoje anoite. Era uma pena que o dia já clareava.