"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

domingo

Sua voz

Sentados numa mesa de bar, não escuto a sua voz. Você fala sobre o futuro, e eu olho o seu sorriso. Tento ler seus lábios, já que a música está muito alta. Sua boca, levemente inclinada para a direita, se move rápido; desisto de entender o que está dizendo. Então opto por ouvir a música, e continuo sorrindo e acenando conforme você proporciona minhas deixas. Seus dentes, tão brancos, levemente tortos, as mãos gesticulando sem parar. Você está animada hoje. Sempre tão entusiasta, adora construir histórias hipotéticas sobre nós dois. Mas você já não é aquela garotinha ingênua da praça sete. Você embaraça caminhos alternativos em suas histórias, nunca se esquece de uma segunda opção, da saída alternativa caso nosso amor não dê certo. Você se resguarda, de mim. Pensa que eu não percebo, não é, meu amor? Mas eu venho anotando cada desarmar de sorriso, desde os nossos quinze anos. E isso é o que eu mais amo em você. Sua independência, sua personalidade forte, mandona. Mas isso não desmerece sua meiguice, o calor constante da sua pele, seu cheiro limpo, suas mãos macias. Nem o charme dos seus palavrões esporádicos, ou das suas crises de mau humor. Você andou amadurecendo, meu amor. Já não me deixa ler seus olhos quando eu os repreendo. Nem mesmo me conta suas frustrações mais embaraçosas. E eu também admiro-lhe isso. Aprendeu sozinha que não é bom que conheçam nossas fraquezas, especialmente aqueles mais próximos. Só ainda não percebeu que existem alguns que te conhecem de berço, e que desses você não se pode esconder. Mesmo assim, acho bonitinhas suas tentativas de dissimular. E agora você aqui, falando comigo, pra mim, de mim; daquele jeitinho que me faz pensar que você se importa. Sabe, um dia eu planejei meu futuro com você. Um dia eu levei bem a sério essas suas palavras, misturadas com a bossa nova do bar. Afoguei-me nelas, adorei o gosto. Mas então, deliciosamente vagante daquele seu mundo, eu entrei em um dos caminhos bifurcados que você guardava para si. Longe de seus olhos eu inspecionei cada metro quadrado das novas terras, com sorriso vitorioso de explorador. E então você me enxotou. Desmanchou aquele sorriso, desviou aquele olhar. E foi ali que descobri que você crescia. Sabe, meu amor, sua maturidade me enternece. É muito inteligente tirar sua vida do alcance daquele garoto mal vestido com a barba por fazer e sem perspectiva de futuro. Muito inteligente tirar seu sucesso das garras do seu amigo enamorado. De mim. Agora você segura meu braço, os olhos bem abertos, pergunta-me se concordo. Sim, meu amor, eu concordo com tudo em você. "Por quê?". Porque você mudou, meu amor.

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