"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

terça-feira

Vencido por resistência

Ultimamente ele vinha negando todos os seus valores sem motivo aparente. As pessoas já não o entediavam tanto, até voltara a tomar banhos regulares. Chegava a fingir que havia encontrado motivos maiores, que pretendia ascensão espiritual; e pode-se dizer que era um bom ator. Espelhava-se agora nas qualidades mais bonitas de seus ídolos, estava até começando a voltar atrás em suas palavras turronas. Resolvera se inspirar em noções menos filosóficas, mais mundanas e plausíveis; algo mais perto do presente. E estava indo bem, até aquela madrugada.
Bisbilhotava sites aleatórios para espantar o tédio e o sono, até que encontrou teorias absurdas que de tão improváveis o davam certo conforto. Mergulhou de cabeça nas doutrinas bizarras, por distração. Sabia-as tolas, mas era tarde e nenhum conhecido online tinha palavras interessantes para dividir, então continuou. Leu até a manhã seguinte, mas nada como nos filmes. Não se manteve a base de café - não surtia efeito nenhum nele - e acabou cochilando por muitas vezes durante os trechos demasiadamente técnicos. No dia seguinte tinha olheiras, mau hálito e dores no corpo, e então dormiu como pedia-lhe seu corpo meramente humano. Acordou com o calor da tarde, desconfortável, tomou banho e ligou o computador novamente.
Leu mais alguns artigos, sentiu vontade sincera de ser estudado o bastante para provar ou derrubar algumas das teorias, depois sentiu tédio, e então voltou a rir de si.
De teorias da conspiração passara para idealismos religiosos e então para sociedades secretas - não que os três fossem assuntos realmente distintos -, e se lembrou de como tudo aquilo era ridículo. De qualquer forma, estava com fome e dor de cabeça, então se enfiou em um jeans velho, cobriu a camiseta já fina pelo uso com uma jaqueta igualmente desbotada, juntou seu caderno de anotações, a carteira e as chaves em uma bolsa e entrou no carro.
Foi a um restaurante barato, passou na drogaria e então resolveu visitar a biblioteca local. No andar de baixo, a sessão que ele sempre visitara. Pediu por um dos livros que tinham sido citados nos trabalhos que ele lera na noite anterior, e o bibliotecário o olhou com olhos duvidosos. Ele parecia novo mas já tinha indícios de calvice, e isso unindo-se a sua magreza e grandes olhos fez com que o outro visse nele alguém interessante. O bibliotecário o indicou o andar de cima, onde ficava o material de pesquisa da biblioteca, e o rapaz se surpreendeu por nunca ter sabido de tal andar. Subiu e se deparou com outra bibliotecária, essa bem mais velha, que aparentou não gostar dele logo no primeiro instante.
Foi entrando na sala, mas a mulher o parou. "Você não pode entrar. Escolha o livro, e eu pego", e colocou ruidosamente na mesa um catalogo não tão grosso quanto o rapaz esperava encontrar a julgar a decoração do lugar. Encontrou apenas um dos livros que lhe havia interessado, e achou que seria suficiente para começar. Pediu-o, e a mulher o entregou.
Sentou-se num banco, ali dentro mesmo, e abriu o livro. Leu os capítulos que pelo título lhe despertaram maior interesse, e depois de cerca de cinquenta páginas das mais loucas crendices, resolveu que já era o bastante.
Voltou para casa a pé, irresponsável quanto ao carro, para aproveitar o ar fresco da tarde, e se sentiu absurdamente bem por não ter então nenhuma linha a sua frente lhe guiando os pensamentos. Cansou-se perto de uma praça, então parou e sentou-se por lá. Consciente da sujeira do lugar, deitou-se no banco e se pôs a analisar o céu. Não que encontrasse o que analisar, ou que aquilo lhe fizesse sentido; mas era o que sempre havia visto fazerem nos filmes, e quis se sentir alegre por dentro como a expressão dos atores parecia demonstrar. Não conseguiu. A luz doeu-lhe, não entendia o desenho das nuvens e em pouco tempo o banco duro começou a incomodar. Foi mais ou menos nesse ponto que se lembrou de que normalmente os atores se deitavam na grama verde, com as cestas de piquenique ao lado, e ladeados de uma companhia do sexo oposto para dividir a tolice do momento. Bom, sem ter o trabalho de sentir-se bobo, sentou-se e ficou a olhar para frente. A praça até que estava movimentada. Velhos com cachorros, pais com filhos pequenos, e um ou dois casaizinhos. Comprou um sorvete ali por perto, voltou à praça e reabriu o caderno. Tinha resumido algumas ideias, copiado alguns conceitos necessários ao entendimento das mesmas, e nos cantos tinha rabiscado com sua caligrafia desleixada e quase ilegível as suas próprias conclusões e discordâncias. Olhou novamente para frente, a praça ficava perto de algumas ruas comerciais. Viu mulheres com sacolas, crianças andando em velotróis, crianças maiores correndo umas atrás das outras, e olhou de novo para o caderno. Deu mais duas colheradas no sorvete, foi até a lixeira e jogou ambos, o sorvete e o caderno, no lixo. Voltou para onde tinha deixado o carro, não gostava mesmo de andar, entrou nele e foi para casa.
Não encontrou nenhuma garota estonteante no caminho, não teve nenhum tipo de esclarecimento sobre a vida, nem mesmo se livrou da dor de cabeça. Só foi para casa, ligou o computador e voltou ao seu sarcasmo habitual.
Engraçado como eu esqueço que tenho princípios em questão de minutos quando não estou triste nem irritada.