"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

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domingo

A minha coisa de cabelos castanhos

Passei pela sala, minha irmã tava assistindo um concurso de beleza.

_ Vai assistir algo que não diminua teu cérebro, Giovana. Teus neurônios tão se suicidando!


_ Lucas, vê se me erra. Por que não volta pros teus quadrinhos infantis, hein? Aquilo sim é intelectualidade. Aposto que teu QI triplica a cada fala de 100 caracteres.


Mas eu nem tava lendo quadrinhos. E não eram infantis, mas ela nunca tinha aberto um. Saí no quintal, me apoiei no varal pelas juntas dos braços e soltei o peso. O varal é meio baixo e eu sou meio alto. Fiquei passando o pé descalço no chão molhado, choveu agora há pouco, e fiquei encarando o céu com os olhos espremidos, acho que eu devo passar menos horas enfiado no meu quarto ou vou acabar fotofóbico. Tanto faz, nem gosto muito de sol de qualquer jeito.


Depois de um tempinho o braço começou a doer, daí andei um pouco em círculos e voltei pra porcaria do meu quarto. Deitei na cama. Caralho, que tédio. Talvez eu devesse mesmo ir ler um quadrinho. Sabe, eu era bem ligado nessa de quadrinhos, me divertia à beça. Sei lá por que, mas ultimamente perdeu a graça. As publicações novas não estão prendendo meu interesse, e os clássicos que eu já conheço de cor se tornaram insuportavelmente monótonos. A Giovana deve estar certa. Acho que eu fiquei velho pra aquela merda.


Sentei no computador e entrei no msn. Tem que ter um desgraçado à toa pra sair comigo. Rolei a barra. Ninguém de interessante, que merda. Fui ao youtube, mas que estranho, nenhuma das bandas que eu conheço surtiram qualquer efeito. Aí abri outra aba e digitei por ninfetas, no google imagens. Eu poderia procurar pornografia de verdade, é que sei lá, tô quase bêbado de preguiça, quero algo leve.


Umas menininhas pirralhas, que coisa não?, e umas outras anônimas no momento daquelas fotos provavelmente tão entediadas quanto eu estou agora. Fui passando as páginas, mas nem deu vontade de continuar. Uns peitos feios, disformes. Deixa pra lá. Aí notei que a Julinha tava online. Julinha é minha amiga. Às vezes a gente se pega, outras vezes a gente só conversa. É que a Julinha é meio criança de vez em quando, mas ela é engraçada. Cliquei no nome dela e disse que tava indo pra lá, ela nem respondeu mas eu fui mesmo assim. Ela mora aqui perto. Fui saindo, aí a mala da minha irmã chamou querendo saber quando eu voltava.


_ Sei lá Gi, antes do natal.


_ Idiota.


_ Fala pra mãe que eu fui na casa da Julia.


Aí ela respondeu com um grunhido afirmativo e eu saí. Sei lá, eu gosto da minha irmã. Ela é meio imbecil às vezes mas é coisa da idade. O porteiro já me conhecia, então me deixou entrar, aí subi com o elevador e cheguei a mão na porta. Aconteceu que tava o maior berreiro lá dentro, então eu não bati na porta. Era o pai dela gritando com ela. Hesitei por uns segundos, e quando eu ia decidindo que era melhor ir embora ouvi um barulho na maçaneta. A porta abriu e o pai dela saiu, transtornado e ofegante. Eu sai do caminho dele. Ele se sobressaltou um pouco com a minha presença, mas bem pouco. Aí parou na minha frente, olhou pra minha cara, primeiro com vestígios da raiva que expressara há pouco, mas logo em seguida ele soltou o ar que estufava-lhe o peito e me lançou um olhar de derrota. Eu fiquei meio sem reação, não sabia se devia abraçar ele ou ficar puto por ele ter gritado daquele jeito com a minha amiga, ou simplesmente correr antes que toda aquela fúria voltasse e se virasse pro meu lado. Mas acabei só ficando parado, com cara de taxo. Aí o pai dela saiu e desceu pelas escadas, sabe-se lá para onde, sem transparecer mais nada. Eu entrei.


A cena era meio triste. A Julinha tava sentada no canto da sala, abraçada com os joelhos, chorando aos soluços, parecia uma criancinha indefesa. A Julia tem muito disso. Tem hora que ela é inconsequente e maluquinha, e impera sobre a turma toda. Mas tem outras horas que ela simplesmente fica vulnerável e desprotegida, e por algum motivo nessas horas eu fico louco de vontade de abraçar ela bem forte, fazer um carinho e dizer que vai passar. Foi mais ou menos o que eu fiz.


Fechei a porta e tranquei, a chave ainda estava lá, e fui me sentar ao lado dela. Ela só levantou o rosto pra ver quem era, mas continuou exatamente como estava. A gente ficou lá em silêncio uns quarenta minutos, eu encostado na parede e ela encolhida em mim, e as lágrimas foram acabando. Findo esse tempo, ela disse que tava com fome. Eu sei que eu devia ter levantado e ido arrumar algo pra ela comer, mas se eu deixasse aquele momento de fragilidade escapar, ela nunca ia me falar exatamente o que estava acontecendo. A Julinha é bem assim. Ela é completamente legível por suas atitudes e comentários, mas tirando os momentos de desgraça em que abaixa todas os muros, ela nunca fala qual é a real. Ela é carente pra caramba, mas odeia expor os fatos. Eu não sei do que ela tem medo, mas sei que ela se sente tão confortável nessa instabilidade que evita racionalizar. Ohei pra cara dela e perguntei bem sério:


_ Porque ele tava gritando?


Ela ficou em silêncio. Deu pra ver que ela estava metade lidando com a dificuldade que tinha pra responder, e metade planejando como desconversar. Mas acabou soltando:


_ Ele tá exausto de mim, assim como todo mundo. E ele está certo. Eu tenho feito todo mundo louco. Eu tô fazendo de tudo pra tornar mais doloroso pra ele, mas eu sei que não foi culpa dele. Sei mesmo. É que eu sinto muito ódio, e tenho descontado nele, por ele ser o único que tem obrigação jurídica de me suportar, mas também em mim mesma. Por isso tanta inconsequência. Por isso tanta resposta ríspida. Mas eu tô acabando com ele, e hoje ele precisou gritar. Ele disse que eu sou a maior egoísta do mundo por querer piorar tudo pra todo mundo só porque eu não consigo superar. Ele foi pra um hotel e me deixou o número dele. Disse que ele também tem algo para superar, mas que se eu mudar de ideia, é só eu ligar e ele volta pra cá, pra nós passarmos por isso juntos. Aí eu gritei que ele queria era reconstruir a vida dele com qualquer vadia e deixar eu me me matar que nem ela fez, que queria se livrar do estorvo que eu sou assim como se livrou dela, ou então deixar eu me perder no mundo pra parar de impedir a felicidade dele. Eu disse um milhão de bobagens, todas as piores que eu fui capaz de pensar. Aí ele respondeu que queria que eu entendesse a realidade, e saiu. Mas eu sei que tô errada e ele tá certo. Eu tô com muita fome.


Eu fiquei impressionado com a sinceridade e completamente assustado. Aquela era uma Julia que eu nunca conhecera. Ela falou baixo e lentamente, sem perder o fluxo, e eu estava comovido por ela ter conseguido. Ela definitivamente precisava dizer aquilo em voz alta. Isso foi de uma maturidade que ninguém jamais poderia supor que aquela Julia drogadinha e hostil pudesse ter. O que aconteceu foi que a mãe dela se suicidou, faz acho que cinco meses. A mãe era maníaco depressiva, e um dia simplesmente resolveu tomar uma coleção de comprimidos pra foder com a vida de todo mundo, inclusive a própria. A Julia ficou revoltada, e daí saiu toda essa merda. Levantei e fui até a geladeira, que estava caoticamente vazia. Ela e pai estavam arrasados, nada estava certo pra eles, logo a despesa não estava sendo feita regularmente. Acabei arrumando um macarrão, ajeitei a mesa e tudo, e depois de meia hora fui até a sala e levantei a Julia, que ainda estava no mesmo canto, mas agora toda esparramada e com os olhos vagos. Levei ela até a mesa, comemos em relativo silêncio - ela só agradeceu e elogiou a comida - e quando terminamos, ela me surpreendeu ainda mais: ela sorriu. Levantou, chegou perto de mim, se ajoelhou em frente à minha cadeira, e sorriu de boca e olhos de um jeito todo lindo. O cabelo dela estava uma zona, o nariz vermelho e o rosto inchado, com algumas marcas de unha pelo rosto, mas mesmo assim ficou bonita quando sorriu. Mais bonita ainda porque sorriu pra mim. Aí ela disse "obrigada", beijou minha boca e me deu um abraço terno. Depois me olhou com olhos convidativos, meio safados e um tanto debochados, comprimiu o sorriso, pegou minha mão e foi me guiando até o banheiro, ligou o chuveiro, tirou a roupa e sentou na banheira, de costas pra mim, e foi jogando a cabeça pra trás até que pudesse me ver, de ponta cabeça pela perspetiva dela. Então ela me lançou a maior risada de criança, e eu acabei indo ensaboar o cabelo dela com o xampu. Depois levei ela pro quarto, estendi um cobertor e fiquei lá, olhando ela dormir. Ela era super bonita e eu estava louco de vontade, mas acabei sendo só um pai. Na verdade eu sabia que naquela hora ela precisava mesmo era de um pai, ainda que não soubesse. Na manhã seguinte minha mãe ligou perguntando quando eu voltava, e eu disse que ainda tava na casa dela e tal, aí me lembrei do puta vazio existencial que estava me corroendo antes de eu entrar naquele apartamento. Acho que todo mundo devia usar suas horas de tédio maluco pra cuidar de alguma coisa. Qualquer coisa. Isso preenche, tá ligado? Isso faz bem, e é mais útil. Agora eu vou levar a minha coisa pra tomar um sorvete. Só não consigo decidir se vai ser um programa pai e filha ou um encontro de casalzinho. Pretendo ficar aqui mais uns dias, e depois eu sei que ela vai ligar pro pai dela e ter uma conversa longa e pessoal. Aí eu volto pros meus gibis.

Identificação (continuação)

- Oi Felipe. Tudo beleza? Cara, cê tá com a maior cara de destruído. Não tá dormindo direito não, é?
- Oi Ed, tô bem sim cara, e você? É, tou quebradaço, tá dando pra perceber? Que merda.
- Mas e a Andressa, ela não veio? Como ela tá?
A Andressa. Felipe sentiu uma enorme preguiça, então, pois o Ed e a Andressa eram colegas e conversavam entre si, então ele precisaria contar a estória da traição, e isso pouco a pouco chegaria nas tias e nas primas e mais olhos julgadores cairiam sobre ele, o que definitivamente não era conveniente agora. Acontece que Felipe não tinha escolha, e mesmo que não contasse nada, Andressa contaria dali a alguns dias, e certamente dramatizando tudo e fazendo-o parecer um crápula. Mas que merda, de novo. Não tinha saída.
- Nós terminamos, cara...
- Sério? Nossa, que duro... Sinto muito. Que que aconteceu? Cês eram tão casalzinho, velho... Não entendo mesmo.
E então Felipe contou sua versão da mentira. A reação de Edmundo foi supreendente. Edmundo tinha lá seus dezoito anos e ainda não abandonara sua rebeldia adolescente. Quando questionado, ele jurava não pertencer a tribo nenhuma, dizia que se limitar assim era ridículo, que ele não era estereotipável, que ele era ele mesmo e pronto. De qualquer forma, para facilitar a descrição, Edmundo tinha algo de punk. Seu cabelo era preto com as pontas azuis, habitualmente espetado, mas agora, com a família toda reunida no aniversário do avô, estava molhado e penteado para baixo por insistência da mãe. Bem, Edmundo tomava banhos e tinha um tênis surrado no pé, no lugar do imaginável coturno, logo ele não era tão punk assim, mas sua jaqueta de couro e a tatuagem do simbolo do anarquismo continuavam ali. O menino era inegavelmente libertário, visivelmente aberto a novas correntes de pensamento, e isso permitia que ele tivesse um ideário de respeito ao diferente, o que confortava Felipe. Mas, apesar de tudo isso, Edmundo tinha uma moral reta, e em circunstâncias normais teria abominado algo como traição em um relacionamento tão sólido como era o de Felipe e Andressa, já que isso quebrava a noção de respeito mútuo, que era algo que Edmundo colocava acima de tudo. Foi por isto que Felipe se surpreendeu: Edmundo perguntou-lhe, com sincera incompreensão e visível perplexidade, contudo sem julgamento ou acusação, o motivo para ele ter feito aquilo.
Era óbvio que traição não fazia parte da personalidade de Felipe. Edmundo sabia bem disso. De todos os primos, Edmundo era o que conhecia-o melhor, e ao unir tal ato com sua feição derrotada, percebeu que o primo não estava bem. Ed colocou a mão no ombro de Felipe e sugeriu que fossem conversar do lado de fora. Felipe, alheio a tudo, deixou-se guiar.
Quando chegaram na esquina do quarteirão, que ficava cinco casas depois da casa onde estavam, sentaram-se no meio fio. Felipe, primeiramente, deixou-se ouvir apenas o silêncio do local, que era prazeroso depois de passar horas condicionado às músicas e vozes da festa do avô. Depois, foi interrompido por um grande nervosismo de quem está prestes a contar uma mentira que ainda não inventou. Foi quando Felipe olhou para Edmundo. Edmundo era diferente. Edmundo não julgava as pessoas. Edmundo era o mais parecido com um amigo que Felipe jamais tivera. E, quando Felipe olhou-o, foi retribuído com um olhar de paciência e preocupação. Felipe sentiu, naquele momento, que confiava no primo, e por isso permitiu-se chorar na frente dele.
- Eu... Eu não traí ela. Ed, você já sentiu algo que você soubesse que era inofensivo e sincero, mas que você tivesse a certeza de que ninguém entenderia?
Ed enrugou a testa e olhou para a rua enquanto pensava, e quando Felipe começou a sentir-se envergonhado, a resposta veio:
- Cara, claro que já. A opinião dos outros fere muito a gente, e claro que nem todo mundo entende aquilo que nós pensamos. Por isso tem gente que deixa de falar muita coisa que pensa. A incompreensão dos outros chega junto com reprimendas, e não interessa se o que a gente fala é sincero e inofensivo, nem todo mundo vai achar isso. Mas eu falo mesmo assim.
Isso era o que Ed tinha de mais bonito, Felipe pensava. Ele sabia responder as palavras certas mesmo sem saber os detalhes do problema exposto. E ele não exigia sabê-los. Felipe ficou absurdamente contente quando Ed não perguntou mais nada. Ficaram os dois em silêncio olhando para a rua vazia, sentindo ambos um conforto e um contentamento simples que não tinham há um bom tempo. Então o celular de Felipe tocou.

Continua

Um papel que achei no chão

Queria começar dizendo que é bem mais fácil quando você é bonita. Não digo apenas pelo meu emprego de entregar flyers no semáforo, mas por tudo. Ser bonita facilita a vida: você pode cortar fila em casos de extrema urgência, respondem com mais vontade quando você pede informações na rua, conseguir favores torna-se mais fácil e as pessoas se aproximam com mais frequência. Não dá pra negar que o mundo é mais simpático com quem é bonito. E eu sou bem feia.
O que existe no interior de cada um é o mais importante, mas não se finjam inocentes: as aparências são essenciais sim e todos nós somos primeiramente julgados por elas. Mesmo porque é o interior, e rápido como as pessoas olham umas pras outras hoje em dia - afinal, existe gente demais -, ninguém faz muito mais que ver superficialmente a superfície. E não foi pleonasmo.
Quanto a escola, preciso desabafar, a escola é o inferno para quem não nasceu bonito. Os apelidinhos e o tal do bullying eu não vou nem me preocupar em descrever porque eu acredito que todos que já passaram pela escola - feios ou não - sabem exatamente do que se trata. Mas alguns detalhes somente nós, feios, sabemos de fato. A desconfiança dos professores, que secretamente acham-nos sempre mais plausíveis de culpa pelas taxinhas na cadeira ou qualquer ato que o valha. A chacota do sexo oposto, sempre pronto para humilhar nossos anseios. O espelho do banheiro feminino. O julgamento cruel e escancarado de todos para tudo o que você faz ou diz. As comparações...
E então o feio cresce, sai fora da escola, arruma um emprego e acha que tudo vai melhorar - mas é óbvio que seus chefes continuaram julgando-o, e as pessoas continuaram negando-se a pegar seus folhetos, e perder-se em um bairro nobre será sempre um grande problema.
Nós feios fomos fadados à vergonha, a vivermos escondidos e a passarmos ligeiros como animais, fomos rebaixados em termos existenciais, e temos que aceitar diariamente o nosso legado. Você, bonitinho, pode achar que é exagero, mas eu digo que não é. Por nossa desgraça existencial não ser assim tão explícita, quem não partilha do sentimento tende a achar que estamos mentindo. O ponto é que nada disso é perceptível exceto para aqueles que o sentem por experiência própria. É impossível explicar corretamente um preconceito que o interlocutor nunca sofreu. A causa do nosso sofrimento não é visível, mas ainda assim é concretamente sensível e sofrível e enorme para os que estão sob seu prisma de incidência.
Mas, acreditem ou não no suplício de ser feio, não é sobre isso que quero tratar por aqui. Quero falar sobre preconceito. Eu concluí o ensino médio, tenho e hoje dezenove anos, trabalho como estagiaria em uma pequena firma e estou matriculada em um curso profissionalizante. Entregar flyers é um trabalho extra para financiar um carro. Acontece que a obsessão humana pelas aparências já me fechou muitas portas, e eu não vou manter isso no anonimato. Empregos, relacionamentos, amizades, sucesso. Porque ninguém quer que alguém feio represente algo grande e importante, como ser oradora da turma, e muito menos se esse algo envolve dinheiro, no caso de uma empresa. Qual parte de ser gorda invalida-me para ser secretária? O mundo está ficando cego tamanha a importância que guardam ao âmbito visual, pois a visão a qual me refiro é aquela que absorve o sentido do quadro, e não apenas a fotografia. Eu não tenho o arquétipo propagado pela moda, mas minha fisiologia e meu espírito são iguais aos de todo mundo, e eu desejo e choro e sorrio e sonho e sinto tanto quanto qualquer um.
Semana passada eu estava entregando os panfletos quando cheguei em um palio cinza. Como eu estava andando entre as duas filas, entreguei-o para uma garotinha que tinha lá seus seis anos e estava ilicitamente no banco do acompanhante, de vidro escancarado, provavelmente divertindo-se a valer com o vento e a paisagem. Quando eu entreguei o papel, ela me olhou e sorriu com a maior sinceridade. Acho que ela ainda não sabia o que se convencionou que é feio, por isso foi capaz de me olhar nos olhos e sorrir com espontaneidade. E, sabem?, aquilo me motivou. Afinal, eu não seria feia se ninguém tivesse imposto um padrão para isso. E não existe um padrão além desse inventado. Se uma criança que ainda não aprendeu-o pôde olhar-me sem dó e sem julgamentos, então talvez quando as pessoas conseguirem desaprender as regras que separam beleza e feiúra, elas possam olhar-se como a garota do palio cinza.
...Mas não é uma tarefa simples.
Acontece que, depois daquele dia, eu decidi que vou ao menos tentar fazer algo a respeito. E foi por isso que escrevi esse flyer, que você está lendo. Encontrei nisso uma forma de ativismo ideólogico e não vou abandoná-lo, independente de quantas pessoas amassem e lancem ao chão perante os meus olhos esse texto que escrevi com sentimento e imprimi com meu dinheiro - vou continuar distribuindo-os em nome do bem estar que senti quando aquela menina me olhou. Porque eu desejo que todos os feios sejam olhados daquela forma um dia. E também os deficientes, os errantes e os viciados. Eu desejo um mundo em que as pessoas se olhem sem subliminaridades. Eu anseio por um mundo sem preconceito, e por isso vou continuar imprimindo e entregando panfletos.
Fico muito feliz por você ter lido esse texto no lugar de tê-lo amassado e jogado ao chão ou ignorado no tapete do carro; já que ele é extenso e não tem joguetes publicitários para prender sua atenção: acontece que normalmente as mensagens mais importantes não vêm em tinta fluorescente ou letra tamanho 36... Repasse a mensagem em nome de um mundo melhor.

quarta-feira

Sobre os bits de informação

A literatura me tortura. Reler o conceito de romantismo até o fim foi quase masoquista. Da torre de Marfim, escapista, melancólica. O pior foi ler sentimentalismo diretamente associado - quase que sinônimos - a egocentrismo. E a conteúdos rasos. Ah. Depois os conceptismos, cultismos, rebuscamentos confusos e quiasmos toscos, seguidos das antíteses incoerentes (mas que caiam bem na métrica). Também vi os bucolismos desprovidos de quaisquer significados, novamente prezando-se as formas e as regras. Fiquei frustrada (e envergonhada) pelo condoreirismo, ainda egocêntrico e sentimental. Expressões grotescas de todas as épocas.

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O estudo das produções humanas é extremamente útil à formação do caráter, pois retratam muitas experiências que todos nós estamos fadados a viver um dia. A melhor parte é que vemo-las por lentes impessoais, pelas quais conseguimos julgar diferentes quadros de forma equilibrada e sincera, para só depois percebermos o quão próximo de nós mesmos é a tal característica recém-julgada. Eu revirei os olhos e esbocei críticas a muitas das manifestações artísticas de diferentes períodos da historia para só depois enxergar que eram exatamente as minhas debilidades que eu estava satirizando. Foi desagradável, já que tive plena consciência de que aqueles comentários jocosos eram realmente a minha opinião sobre o que eu estava lendo ou vendo, e que eu realmente repudiava muitos dos meus traços de personalidade. É frutífero estudar as criações humanas por serem elas fotografias de nós todos, julgar tais é uma maneira de ver a si mesmo como se do lado de fora.


Acho engraçado como o que eu ouço/leio/vejo/sinto frequentemente se reproduz mais tarde em outras circunstancias, e meu cérebro as une como que por impulso, a formular conclusões, gracejos ou perguntas que me surgem inesperadas. Vi algo sobre assimilarmos conscientemente menos da metade de todas as informações que o nosso cerébro percebe a cada instante, sendo que o restante fica no inconsciente sem que tenhamos a percepção disso. Acho que daí surgem tantas analogias e combinações, e destas as criações intelectuais, factuais ou materiais. Por isso o mundo que nos cerca tem ampla interferência nessas criações, mas, ao mesmo tempo, a máquina humana é basicamente a mesma desde o primeiro milênio, o que influi na grande proximidade dos sentimentos vividos nesta e naquela época.


As circunstâncias alteram-se a cada momento, mas, afinal, nossas fraquezas e habilidades são em suma parecidas - o que me convence de que não é absurdo termos ainda as angustias que tinham os navegadores do mundo plano e de monstros marinhos. Vi na humanidade a qual tive acesso ignorâncias, fragilidades e soluções falhas que são integralmente comuns a mim. Encontrei defeitos e a principio me envergonhei por partilha-los. Contudo, odia-los e despreza-los, além de autodestrutivo, é inútil à resolução dos meus semelhantes defeitos. Pude ver que entender o processo histórico nos mais diversos pontos é essencial a cada um de nós, é a única forma de saber onde realmente pecamos, pois é o único espelho no qual podemos acreditar. Se a crítica vier de nós mesmos e for, à priori, mascarada, será intuitivo aceitá-la e possível segui-la. Ademais, a humanidade ainda tem qualidades a serem descobertas.

sábado

Voltando pra casa

Hoje eu saí da escola relativamente tarde. Estava cansada e faminta, por isso decidi que merecia um milk shake. Cheguei no ponto a tempo de pegar o ônibus, mas perdi-o, resolvida a comprar meu sorvete. Comprei, vi um outro ônibus que me faria a vez passar, não daria tempo de correr. Me sentei, esperei alguns minutos, mas eu sabia que nenhum ônibus que me atendesse passaria por ali nos próximos cinquenta. Subi até outro ponto, no qual fiquei só alguns segundos, quando decidi que um terceiro, um pouco mais acima, me daria mais opções. Fui, o ombro doendo pelas duas bolsas, o mp4 passou de ney para pitty, eu sorri. Pitty é tão nostálgico. No terceiro ponto havia ainda um banco, o qual eu desejava deveras então, mas estava ocupado pela bolsa de uma quarentona. Pensei azeda comigo, "é, é por isso que eu sento nos lugares reservados". Estava realmente pesado, então parei em frente ao banco, tirei a bolsa transversal e pus no chão fazendo manha, gemendo 'ai'. Ela tirou a bolsa. Agradeci e sentei-me, satisfeita. Passou um belo tempo, a mulher foi embora, outras chegaram, chequei meu celular, dezesseis ligações perdidas, todas da minha mãe, claro. Liguei pra ela, que estava estressada, perdi todo o bom humor e desliguei tão logo quanto pude. Música alta, brigando com a mãe, quão típica... Juro que percebi olhares de reprovação dos comparsas do ponto, mas posso ter imaginado. Outro ônibus que me servia passou, mas não parou. Frustrante. Escurecia, e o milk shake acabara. Aí notei que alguém falava comigo. Tirei um fone, pedi desculpa, era uma senhorinha. Bem frágil, magrelinha, toda enrrugada e de cabelos brancos. Meias estampadas marrons com bolinhas - acho que eram bolinhas - rosa, rasgadas nas pontas. Sandálias ortopédicas, vestido - ou saia? - e celular no pescoço. Só reparei dos joelhos pra baixo porque era tal o limite do meu campo visual. Enfim, falava comigo. Perguntava se o número, 62seiláoque, teria um 3 na frente. Disse que tinha, ela tentou digitar. Não conseguia, ofereci ajuda. Digitei, ela ligou, ouvi o começo da conversa e recoloquei os fones. Notei quando ela desligou, e por ter sido bem na pausa da música, notei que ainda falava. Tirei os fones. Ela começou a conversar comigo. Contou que iria à missa. Contou que suas pernas doíam. Contou que seis meses atrás um motorista de ônibus dera partida antes que ela conseguisse terminar de descer, e que ela caiu. Caiu de pé, "graças a deus", na hora não sentiu nada. Depois sentiu dor. Agora a perna doía "que nada dá jeito". O médico já passara-lhe remédios de todos os tipos. Doía ao dormir, e ao acordar. Ao acordar era pior, mal podia relar os pés no chão. Mas à noite era "uma dorzinha enjoada". Estava doendo naquele momento, mas ela aguentara por querer ir à missa. Era daí a vinte minutos. Contou que colocara uma prótese, não me lembro onde, dez anos atrás. Contou que já passara por quatro cirurgias. Contou que fez uma no coração. Contou que achava que os médicos escondiam-lhe os motivos da dor na perna, que achava que deveria operar, que sabia que eles não queriam operá-la pela idade avançada. Contou que machucara o joelho hoje cedo, batera na pia, sangrou até. Contou que o homem para quem ligara, para contar sobre a dor e o joelho, era como um filho. Contou que seu filho morrera, um mês atrás... Então a voz dela falseou. Olhei-a, os lábios tremiam. Queria chorar. Falou sobre como era tudo difícil. Contou que não sabia o que fazer, que achava que devia arriscar outra operação. "Vou deixar na mão de deus". Na mão de deus... Quis abraça-la, mas não o fiz, não sei porque. Aí um ônibus, o que passara antes sem parar, apareceu na esquina. Como eu sabia que o próximo demoraria a chegar, pedi licença para pegar aquele. Uma outra mulher, que já tinha alguns fios brancos, ouvia a nossa conversa. Melhor dizendo, as palavras dela. Eu não encontrei nada além de "é complicado...". Me deu licença, desejei-lhe boa sorte, com tudo, saí correndo pois o ônibus estava parado no ponto da frente, uns cinco metros pra lá. A outra mulher me lembrou que eu estava esquecendo a bolsa transversal, agradeci, peguei-a, corri. Entrei no ônibus, enfim. Chorei. Deus... Errei ao dizer que ele não existe. Sei lá se ele existe. Mas quem poderia dizer àquela senhorinha que ele é uma mentira? Tanto faz se ele existe... Mas eu desejo, do fundo de mim, que ele continue a existir na concepção dela. E sabe a Pitty, o milk shake, a grosseria no telefone, os assentos reservados? Então, nunca me senti tão idiota.

sexta-feira

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Todos queremos ser únicos. Essa história de querer se sentir aceito só é verdade por alguns ângulos. Na maior parte do tempo estamos mesmo é tratando de ser diferente, de parecermos nós mesmos - mas naquela versão pré-escolhida. Todo mundo sorri por dentro, mesmo que inconsciente, quando chamam-lhe de "estranho". A verdade é que assimilamos (e não sei se isso é certo ou não) ser diferente com ser especial. Não importa em qual aspecto, desde que você saia do senso comum. Mas o problema é que somos todos idênticos. Todos falamos do mesmo jeito, sentimos as mesmas coisas, erramos os mesmos erros, e, mais cedo ou mais tarde, pensamos sobre os mesmos assuntos. Não há fuga da regra: dois olhos, boca, nariz, cabelo, tronco e membros. Um corte de cabelo, uma maquiagem ou uma tatuagem não muda nada disso. Me peguei hoje mesmo cogitando a ideia de que os deficientes físicos se sintam especiais, diferentes, únicos por tal. Mas então caí no conceito de que todos estamos somente em busca de aceitação, que como eu disse, é uma verdade por alguns ângulos. Agora, pensando a respeito, acho que quase entendo os motivos. Nossos instintos animais nos levam a pedir por aceitação, com fins como perpetuação da espécie, proteção e todo o mais; mas a parte mais recente de nossa mente, aquela que nós mesmos construímos com costumes, crenças e regras e que tem total consciência do espelho, da tv e do computador, essa parte vive em prol de autoaceitação - e esta prima a excluisividade.
...O meu problema, realmente, é não saber qual dos dois lados grita mais alto em mim.

domingo

Ego

Nós não somos nada além de uma coincidência da evolução. A espécie humana não tem nada de especial senão o fato de ser a nossa. Tudo isso é invenção. O nosso deus, a nossa moral, cada valor e cada significado desde o mais simples, está na nossa cabeça e só.
O mundo material não faz sentido. Nenhum dos meus desejos fazem.

...Só que eu cansei de ver desse jeito.
Estou aqui por motivo nenhum e com finalidade nenhuma. Isto é, nenhuma além de perpetuar a espécie, mas já está claro que perpetuar a espécie é tão inútil quanto eu. Não posso continuar existindo com essa concepção, então optei por ignorantemente negá-la.
Idependente dos motivos, a vida existe e eu estou aqui. Então tudo bem, vou viver até quando conseguir e vou estudar coisas que me interessam, mas sem me culpar por ler sobre criações mundanas que nada valem. Talvez um dia eu até esbarre nos conceitos que me assombram; mas nunca mais vou deixar que eles me governem.
Sou nova e inconsequente, sei pouco de mim; contudo posso dizer, alto e claro, sem medo da pretensão, que entendi o princípio da vida: ela não é poética ou apotética como iludiam-nos os filósofos. A vida é um acaso, e as razões do mundo não estão em nenhum lugar fora da consciência humana.
Não preciso mais existir nesse erro. Vou continuar aqui, e agora livre por saber que razão nenhuma me coage.
O engraçado é que eu ainda não estou feliz...