"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

quarta-feira

Sobre os bits de informação

A literatura me tortura. Reler o conceito de romantismo até o fim foi quase masoquista. Da torre de Marfim, escapista, melancólica. O pior foi ler sentimentalismo diretamente associado - quase que sinônimos - a egocentrismo. E a conteúdos rasos. Ah. Depois os conceptismos, cultismos, rebuscamentos confusos e quiasmos toscos, seguidos das antíteses incoerentes (mas que caiam bem na métrica). Também vi os bucolismos desprovidos de quaisquer significados, novamente prezando-se as formas e as regras. Fiquei frustrada (e envergonhada) pelo condoreirismo, ainda egocêntrico e sentimental. Expressões grotescas de todas as épocas.

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O estudo das produções humanas é extremamente útil à formação do caráter, pois retratam muitas experiências que todos nós estamos fadados a viver um dia. A melhor parte é que vemo-las por lentes impessoais, pelas quais conseguimos julgar diferentes quadros de forma equilibrada e sincera, para só depois percebermos o quão próximo de nós mesmos é a tal característica recém-julgada. Eu revirei os olhos e esbocei críticas a muitas das manifestações artísticas de diferentes períodos da historia para só depois enxergar que eram exatamente as minhas debilidades que eu estava satirizando. Foi desagradável, já que tive plena consciência de que aqueles comentários jocosos eram realmente a minha opinião sobre o que eu estava lendo ou vendo, e que eu realmente repudiava muitos dos meus traços de personalidade. É frutífero estudar as criações humanas por serem elas fotografias de nós todos, julgar tais é uma maneira de ver a si mesmo como se do lado de fora.


Acho engraçado como o que eu ouço/leio/vejo/sinto frequentemente se reproduz mais tarde em outras circunstancias, e meu cérebro as une como que por impulso, a formular conclusões, gracejos ou perguntas que me surgem inesperadas. Vi algo sobre assimilarmos conscientemente menos da metade de todas as informações que o nosso cerébro percebe a cada instante, sendo que o restante fica no inconsciente sem que tenhamos a percepção disso. Acho que daí surgem tantas analogias e combinações, e destas as criações intelectuais, factuais ou materiais. Por isso o mundo que nos cerca tem ampla interferência nessas criações, mas, ao mesmo tempo, a máquina humana é basicamente a mesma desde o primeiro milênio, o que influi na grande proximidade dos sentimentos vividos nesta e naquela época.


As circunstâncias alteram-se a cada momento, mas, afinal, nossas fraquezas e habilidades são em suma parecidas - o que me convence de que não é absurdo termos ainda as angustias que tinham os navegadores do mundo plano e de monstros marinhos. Vi na humanidade a qual tive acesso ignorâncias, fragilidades e soluções falhas que são integralmente comuns a mim. Encontrei defeitos e a principio me envergonhei por partilha-los. Contudo, odia-los e despreza-los, além de autodestrutivo, é inútil à resolução dos meus semelhantes defeitos. Pude ver que entender o processo histórico nos mais diversos pontos é essencial a cada um de nós, é a única forma de saber onde realmente pecamos, pois é o único espelho no qual podemos acreditar. Se a crítica vier de nós mesmos e for, à priori, mascarada, será intuitivo aceitá-la e possível segui-la. Ademais, a humanidade ainda tem qualidades a serem descobertas.

sexta-feira

don't call the doctors
they've seen it all before
the'll say
"just let her crash and burn, she'll learn,
the attention just ecourages her"

Girl Anachronism - Amanda Palmer

sábado

Voltando pra casa

Hoje eu saí da escola relativamente tarde. Estava cansada e faminta, por isso decidi que merecia um milk shake. Cheguei no ponto a tempo de pegar o ônibus, mas perdi-o, resolvida a comprar meu sorvete. Comprei, vi um outro ônibus que me faria a vez passar, não daria tempo de correr. Me sentei, esperei alguns minutos, mas eu sabia que nenhum ônibus que me atendesse passaria por ali nos próximos cinquenta. Subi até outro ponto, no qual fiquei só alguns segundos, quando decidi que um terceiro, um pouco mais acima, me daria mais opções. Fui, o ombro doendo pelas duas bolsas, o mp4 passou de ney para pitty, eu sorri. Pitty é tão nostálgico. No terceiro ponto havia ainda um banco, o qual eu desejava deveras então, mas estava ocupado pela bolsa de uma quarentona. Pensei azeda comigo, "é, é por isso que eu sento nos lugares reservados". Estava realmente pesado, então parei em frente ao banco, tirei a bolsa transversal e pus no chão fazendo manha, gemendo 'ai'. Ela tirou a bolsa. Agradeci e sentei-me, satisfeita. Passou um belo tempo, a mulher foi embora, outras chegaram, chequei meu celular, dezesseis ligações perdidas, todas da minha mãe, claro. Liguei pra ela, que estava estressada, perdi todo o bom humor e desliguei tão logo quanto pude. Música alta, brigando com a mãe, quão típica... Juro que percebi olhares de reprovação dos comparsas do ponto, mas posso ter imaginado. Outro ônibus que me servia passou, mas não parou. Frustrante. Escurecia, e o milk shake acabara. Aí notei que alguém falava comigo. Tirei um fone, pedi desculpa, era uma senhorinha. Bem frágil, magrelinha, toda enrrugada e de cabelos brancos. Meias estampadas marrons com bolinhas - acho que eram bolinhas - rosa, rasgadas nas pontas. Sandálias ortopédicas, vestido - ou saia? - e celular no pescoço. Só reparei dos joelhos pra baixo porque era tal o limite do meu campo visual. Enfim, falava comigo. Perguntava se o número, 62seiláoque, teria um 3 na frente. Disse que tinha, ela tentou digitar. Não conseguia, ofereci ajuda. Digitei, ela ligou, ouvi o começo da conversa e recoloquei os fones. Notei quando ela desligou, e por ter sido bem na pausa da música, notei que ainda falava. Tirei os fones. Ela começou a conversar comigo. Contou que iria à missa. Contou que suas pernas doíam. Contou que seis meses atrás um motorista de ônibus dera partida antes que ela conseguisse terminar de descer, e que ela caiu. Caiu de pé, "graças a deus", na hora não sentiu nada. Depois sentiu dor. Agora a perna doía "que nada dá jeito". O médico já passara-lhe remédios de todos os tipos. Doía ao dormir, e ao acordar. Ao acordar era pior, mal podia relar os pés no chão. Mas à noite era "uma dorzinha enjoada". Estava doendo naquele momento, mas ela aguentara por querer ir à missa. Era daí a vinte minutos. Contou que colocara uma prótese, não me lembro onde, dez anos atrás. Contou que já passara por quatro cirurgias. Contou que fez uma no coração. Contou que achava que os médicos escondiam-lhe os motivos da dor na perna, que achava que deveria operar, que sabia que eles não queriam operá-la pela idade avançada. Contou que machucara o joelho hoje cedo, batera na pia, sangrou até. Contou que o homem para quem ligara, para contar sobre a dor e o joelho, era como um filho. Contou que seu filho morrera, um mês atrás... Então a voz dela falseou. Olhei-a, os lábios tremiam. Queria chorar. Falou sobre como era tudo difícil. Contou que não sabia o que fazer, que achava que devia arriscar outra operação. "Vou deixar na mão de deus". Na mão de deus... Quis abraça-la, mas não o fiz, não sei porque. Aí um ônibus, o que passara antes sem parar, apareceu na esquina. Como eu sabia que o próximo demoraria a chegar, pedi licença para pegar aquele. Uma outra mulher, que já tinha alguns fios brancos, ouvia a nossa conversa. Melhor dizendo, as palavras dela. Eu não encontrei nada além de "é complicado...". Me deu licença, desejei-lhe boa sorte, com tudo, saí correndo pois o ônibus estava parado no ponto da frente, uns cinco metros pra lá. A outra mulher me lembrou que eu estava esquecendo a bolsa transversal, agradeci, peguei-a, corri. Entrei no ônibus, enfim. Chorei. Deus... Errei ao dizer que ele não existe. Sei lá se ele existe. Mas quem poderia dizer àquela senhorinha que ele é uma mentira? Tanto faz se ele existe... Mas eu desejo, do fundo de mim, que ele continue a existir na concepção dela. E sabe a Pitty, o milk shake, a grosseria no telefone, os assentos reservados? Então, nunca me senti tão idiota.