"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

terça-feira

Sina

Eu não tenho nada. Meus 23 anos foram mentira e solidão, e provavelmente continuem sendo, pois os anos não mudam além do número. A pessoa não muda, apesar do número, eis a grande verdade. Mas por um tempo as coisas melhoraram um pouco, conheci uma pequena. Ela era uma coisa tão frágil e quebradiça que, quando passou pela minha frente, eu não pude simplesmente chutar. E ela veio pedir arrego logo pros meus olhos, que eram os mais vazios e deturpados e caóticos e suicidas do bar. Não tive escolha. Quando uma pequena como aquela olha triste em seus olhos, você simplesmente não tem direito de ignorar. Questão de moral, até pra gente como eu, que já perdeu todo o moral no caminho. Acabei indo sentar com ela. De princípio me intrigava, ela era tão pura para aquele pub decadente... Acho que foi por isso que eu me senti obrigado a atender o chamado dos olhos dela: uma pequena como aquela, num bar como aquele? Algo de muito errado estaria acontecendo. Eu sou vidrado em coisas muito erradas.
Depois de uns quarenta minutos de conversa atrapalhada - eu tentando não jogar meu bafo de álcool e nicotina misturado com retórica da depressão pra cima dela, e ela totalmente calada e fechada enquanto percebia (e gravava) cada milimetro do meu niilismo de bar - tomei coragem e convidei ela para ir a outro lugar. Já passava da uma da manhã e meu hálito provavelmente acabou transparecendo, e eu imaginei que uma guria como aquela jamais sairia com um desconhecido. Fiz o convite mesmo assim, porque me sufocava tê-la ali, naquele ambiente cansado no meio e pervertido nos cantos... Mesmo jurando que ela diria não. Talvez eu quisesse só dar o fora dali - a pureza dela a princípio me maltratava, corroía. Contudo, ela veio. Fiquei perplexo, levei ela a uma praça. Poderia tê-la levado à minha casa, mas essa ideia me pareceu blasfêmica. Sentamos num banco, ela ergueu a cabeça e mirou de novo nos meus olhos condenados. Não aguentei mais.
- Por que você tá aqui, comigo, numa hora dessas? Você não parecia se divertir lá no bar, estava sozinha. Estava esperando alguém? Você deve ter família, amigos... Nunca te ensinaram a não aceitar convites de estranhos? Você nem deve ser maior de idade...
E ela sorriu. Sorriu, olhou as próprias pernas, olhou para mim de novo, e levantou. Eu imaginei que ela fosse embora, mas ela andou em direção ao pub. Tive que segui-la, em parte por não poder deixá-la sozinha, e em outra parte por não conseguir deixá-la fugir de mim.
Entramos juntos no pub, sem trocar palavra. Ela foi direto ao bar, pediu três doses, e virou-as ainda sem olhar para mim. Depois foi aonde as pessoas dançavam, e dançou também. Flertou com alguns homens, mas não beijou nenhum. Ela tinha uma magia no olhar que coibia qualquer homem a venerá-la, mas ao mesmo tempo fazia com que eles se sentissem culpados em tentar contato, o que explica que, àquela hora, com tanta gente ébria na casa, nenhum lábio tenha tocado o dela a contragosto. Eu fiquei lá, sentado no bar, olhando o que ela fazia. Divertia-me um bocado vê-la - sabe aquele feitiço de crianças brincando ou garotas arrumando o cabelo?, eu não podia tirar os olhos, tamanho o prazer que a cena me dava. Depois de muito tempo e mais várias doses, ela se sentou junto a mim no bar, mas virada para o outro lado. Foi a primeira vez que me olhou desde a praça. Não hesitei: - Vamos embora?. E ela disse "Claro".
Pegamos o primeiro metrô da manhã, para a minha casa. Ela entrou, tirou os saltos altos, foi direto ao meu quarto e se jogou na cama. Eu sorri. Joguei uma manta sobre ela e fui checar meus armários. Vazios, obviamente. Tomei um banho e fui ao mercado reabastecê-los, cochilei e depois fui preparar um almoço. No meio da tarde, ela acordou. Eu esperava que ela acordasse confusa, assustada, querendo sumir da minha casa. Mas não. Disse que estava com fome, comeu e depois sentou-se ao meu lado, na varanda. Eu não conseguia acreditar. Conversamos por muitas horas, sobre tudo. Ela me contou que estava meio perdida, que precisava fugir um pouco de si mesma. Eu compreendi com excelência, uma vez que sou perito em fugir de mim, e não questionei. De qualquer forma eu não poderia ajudá-la, e não queria afastá-la. Compreender o que a pessoa sente (ou fingir compreender) sempre foi e será mais eficaz do que tentar convencê-la de algo. Ademais, cuidar dela era o meu novo vício - e teriapia -, por isso eu nunca a contra argumentei. Talvez ela pudesse me salvar, afinal, com sua pele angelical e seus olhos ingênuos. Outra grande verdade oculta é que mesmo as atitudes mais bonitas têm raízes no egoísmo mais vil - o bem estar do próprio altruísta com a ação, às vezes até mesmo a sensação de perdão aos próprios erros. Na noite daquele dia eu coloquei Billie Holiday para tocar, no notebook. Ela sorriu e cantou junto. Cantamos. Eu, cantando na varanda. Inacreditável. Acho que foi o melhor dia que vivi até hoje... Aquela guria era meu altar.
***
Hoje já faz dois anos que a conheci. Encontrei um cd da Lady Day que ela me dera; as preferidas dela... Nós não conversamos mais. Ficamos juntos por mais de um ano, eu sugando a força vital dela como um vampiro mental. Um íncubo. Fingia que era proteção, mas eu e ela sabíamos o quanto de obsessivo havia na minha atitude. Eu acho que suguei tudo dela. Alimentei-me dos mínimos resquícios de infância que encontrei em seu corpo... Destruí aquela inocência e roubei toda a beleza pueril. E a minha culpa me transformou de protetor enamorado a monstro. Ela fugiu, como fazia sempre. Eu não queria deixá-la fugir, mas percebi que era o mais digno a ser feito. Não que eu tenha dignidade. Acho que eu simplesmente a amava. Eu amei alguém. E deixei esse alguém ir embora, tamanha a toxidade da minha companhia... A honra da tragédia. Seria até bonito, se não fosse comigo... Agora assisto à dor e à solidão renascerem em mim.

I'll find you in the morning sun,
and when the night is new
i'll be looking at the moon...
But i'll be seeing you.