"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

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domingo

Repressão

foda-se vc. e qr saber? eu q me foda, tbm. nós temos problemas. ñ estou tentando vestir a personagem de menina fodida na vida. eu ñ sou. ms nós temos problemas sim. e vc ñ tá com a menor vontade de se desdobrar pra abraçar os meus. nem eu os seus. tanto faz.
Recebida: 17:19:10
Hoje
De: Andressa
01692573664

Felipe fechou o celular e colocou-o de volta no bolso, sem afetação pela mensagem. Na verdade até revirou os olhos depois de lê-la. Não é que Felipe não tivesse sentimentos ou consideração por Andressa, e sim que ela simplesmente não entenderia. Ela nunca entenderia. Andressa tem aquela mania de entrar na mentalidade das pessoas e julgar o que elas estão fazendo a partir do motivo pelo qual ela (acha que) sabe que a pessoa está agindo. Acontece que ela se mete a psicóloga e vive convicta de que está certa, mas não percebe que algumas pessoas destoam do pequeno padrão que ela tem de seres humanos. Vez ou outra formam-se por aí seres humanos mais complexos, menos lógicos, do que aqueles com os quais ela sempre conviveu. De fato ela é excelente com pessoas comuns, realmente tem sucesso ao lê-las. Contudo, Andressa nunca conheceu pessoas de fato problemáticas, e por isso não sabe compreendê-las. E isso não significa que Felipe seja um garoto problemático, como Andressa sugeriu por sms. Ser problemático é muito mais profundo, muito mais completo. Mas Felipe não era, digamos, um garoto mainstream, e por isso a psicologia rasa de Andressa não o incluia. Ele, entretanto, entendia Andressa muito mais do que ela jamais saberia - e por isso se colocou afastado.
Felipe estava em uma festa de família, aniversário do avô. Assim que devolveu o celular ao bolso e transpareceu exaustão, pôs-se a inspecionar os arredores para assegurar que nenhum parente havia percebido sua infelicidade. Felipe era muito fechado, mas essa não era a real causa de tamanha preocupação. Era só que dizer a verdade no momento seria embaraçoso demais, além de quase impossível. O menino não estava pronto para dizer o que sentia em voz alta, não estava sequer seguro sobre isso. Além de tudo, ele estava com medo. Olhou para a mesa de salgadinhos: nenhuma prima ou tia por perto, decidiu distrair-se com alguma comida. Andressa sim era bastante padrão. Ela não tinha consciência disso, mas era completamente vítima do sistema. Ela era insegura, sentia necessidade de ser considerada bonita, não suportava críticas e trocava o formato do salto periodicamente como mandavam as revistas. Essa estória de ela ler filosofia ou gostar de compreender pessoas era uma grande fachada, ademais conhecimento nenhum transforma o caráter sem que a pessoa se empenhe para tal - e, como dito, Andressa nem mesmo sabia que ela era um perfeito clichê. Felipe fora namorado dela, por dois ano e três meses. Ele finalmente percebera que estivera enganado quanto a ela, que deixou-se apaixonar pelo estandarte que ela carregava e por uma menina que de fato não existia em lugar algum fora da cabeça dele. Quando Felipe, enfim, deu-se conta disso, a relação perdeu todo o sentido. Talvez esse tenha sido o empurrão fatal para a conclusão que atormentava-o então, mas com certeza não fora o início. Uma única decepção amorosa não seria suficiente, o homossexualidade é profundo e pessoal demais para ser concebido com uma única experiência frustrante.
O ponto é que Andressa não entenderia. Foram namorados por anos e Felipe tinha absoluta certeza de que ela jamais estivera suficientemente ciente da linha de raciocínio dele para compreender algo tão significativo. Andressa não sabia nada sobre ele, assim como não sabia nada sobre pessoas diferentes do padrão. A bem dizer, Andressa não sabia sobre nada que não se referisse a ela mesma ou a matérias escolares. Felipe não podia abrir-se com ela. Além disso, ele sempre esteve muito desconfortável com outros garotos, pela insegurança e pelo medo que sentia ao flagrar-se pensando em coisas que, tecnicamente, não deveria. Não que ele achasse errado ser homossexual, mas ia contra a educação que ele tivera - que ele engolira à força - até então. Com isso, acabou isolando-se por conveniência, e, embora Felipe tivesse sim alguns colegas, nenhum era íntimo o bastante para ajudar com a angústia que ele sentia no momento.
O menino, confuso e desorientado, suportou o namoro até o último instante. Contudo a futilidade e o egoísmo de Andressa estavam sufocando-o, além de sua carência e possessividade, e Felipe definitivamente não estava passando por um momento compreensivo de sua vida, por isso terminou o namoro. Como a descoberta de sua homossexualidade, somado a sua confusão mental, tinham gerado o congelamento completo dos carinhos dele com ela, e como tudo isso deixara-o absurdamente introspectivo e alheio às (constantes) crises dela, Andressa - quase que logicamente - acusou-o de traição. Felipe ficou muitissimo triste com a desconfiança dela, mas decidiu que seria mais fácil e eficaz mentir traição no lugar de confessar sua recente revolução interna. Disso tudo foi que emergiu a vigésima sétima mensagem enfurecida de Andressa, recebida instantes atrás.
Tendo em mãos a estória real, entretanto, fica claro que Andressa, por sua ignorância quanto aos verdadeiros motivos, estava julgando tudo errado. O caso é que Felipe não liga. Ele até reconhece que seria mais justo, mais moralmente correto, contar a ela o que realmente estava acontecendo. Na mente dele até latejava a necessidade de fazê-lo. Mas não hoje. Não ainda. Primeiro ele queria estar certo sobre o que estava sentindo, sobre seus motivos e sua determinação. Antes de qualquer coisa ele queria criar coragem, conseguir forças e compreender seus anseios - e não era um desejo imoral. Depois ele conversaria com a família. Com Andressa. Pouco a pouco sua opção sexual deixaria de ser um grande impasse, um obstáculo, e se transformaria em algo natural e sem peso, em algo indiferente no que tange à personalidade e à essência dele. Ele só não estava pronto ainda. Seria muito difícil para Andressa e para a família efetivamente aceitarem e compreenderem sem julgar aquela "nova" característica. Felipe estava refletindo sobre o enorme obstáculo que figurava assumir-se algo frequentemente incompreendido. Também tinha vagos vislumbres sobre conceitos como liberdade e autenticidade. Felipe pensava um turbilhão de coisas grandes e complicadas, quando um primo, dois anos mais novo que ele e visivelmente diferente do comum, aproximou-se e puxou assunto.

Continua

Um papel que achei no chão

Queria começar dizendo que é bem mais fácil quando você é bonita. Não digo apenas pelo meu emprego de entregar flyers no semáforo, mas por tudo. Ser bonita facilita a vida: você pode cortar fila em casos de extrema urgência, respondem com mais vontade quando você pede informações na rua, conseguir favores torna-se mais fácil e as pessoas se aproximam com mais frequência. Não dá pra negar que o mundo é mais simpático com quem é bonito. E eu sou bem feia.
O que existe no interior de cada um é o mais importante, mas não se finjam inocentes: as aparências são essenciais sim e todos nós somos primeiramente julgados por elas. Mesmo porque é o interior, e rápido como as pessoas olham umas pras outras hoje em dia - afinal, existe gente demais -, ninguém faz muito mais que ver superficialmente a superfície. E não foi pleonasmo.
Quanto a escola, preciso desabafar, a escola é o inferno para quem não nasceu bonito. Os apelidinhos e o tal do bullying eu não vou nem me preocupar em descrever porque eu acredito que todos que já passaram pela escola - feios ou não - sabem exatamente do que se trata. Mas alguns detalhes somente nós, feios, sabemos de fato. A desconfiança dos professores, que secretamente acham-nos sempre mais plausíveis de culpa pelas taxinhas na cadeira ou qualquer ato que o valha. A chacota do sexo oposto, sempre pronto para humilhar nossos anseios. O espelho do banheiro feminino. O julgamento cruel e escancarado de todos para tudo o que você faz ou diz. As comparações...
E então o feio cresce, sai fora da escola, arruma um emprego e acha que tudo vai melhorar - mas é óbvio que seus chefes continuaram julgando-o, e as pessoas continuaram negando-se a pegar seus folhetos, e perder-se em um bairro nobre será sempre um grande problema.
Nós feios fomos fadados à vergonha, a vivermos escondidos e a passarmos ligeiros como animais, fomos rebaixados em termos existenciais, e temos que aceitar diariamente o nosso legado. Você, bonitinho, pode achar que é exagero, mas eu digo que não é. Por nossa desgraça existencial não ser assim tão explícita, quem não partilha do sentimento tende a achar que estamos mentindo. O ponto é que nada disso é perceptível exceto para aqueles que o sentem por experiência própria. É impossível explicar corretamente um preconceito que o interlocutor nunca sofreu. A causa do nosso sofrimento não é visível, mas ainda assim é concretamente sensível e sofrível e enorme para os que estão sob seu prisma de incidência.
Mas, acreditem ou não no suplício de ser feio, não é sobre isso que quero tratar por aqui. Quero falar sobre preconceito. Eu concluí o ensino médio, tenho e hoje dezenove anos, trabalho como estagiaria em uma pequena firma e estou matriculada em um curso profissionalizante. Entregar flyers é um trabalho extra para financiar um carro. Acontece que a obsessão humana pelas aparências já me fechou muitas portas, e eu não vou manter isso no anonimato. Empregos, relacionamentos, amizades, sucesso. Porque ninguém quer que alguém feio represente algo grande e importante, como ser oradora da turma, e muito menos se esse algo envolve dinheiro, no caso de uma empresa. Qual parte de ser gorda invalida-me para ser secretária? O mundo está ficando cego tamanha a importância que guardam ao âmbito visual, pois a visão a qual me refiro é aquela que absorve o sentido do quadro, e não apenas a fotografia. Eu não tenho o arquétipo propagado pela moda, mas minha fisiologia e meu espírito são iguais aos de todo mundo, e eu desejo e choro e sorrio e sonho e sinto tanto quanto qualquer um.
Semana passada eu estava entregando os panfletos quando cheguei em um palio cinza. Como eu estava andando entre as duas filas, entreguei-o para uma garotinha que tinha lá seus seis anos e estava ilicitamente no banco do acompanhante, de vidro escancarado, provavelmente divertindo-se a valer com o vento e a paisagem. Quando eu entreguei o papel, ela me olhou e sorriu com a maior sinceridade. Acho que ela ainda não sabia o que se convencionou que é feio, por isso foi capaz de me olhar nos olhos e sorrir com espontaneidade. E, sabem?, aquilo me motivou. Afinal, eu não seria feia se ninguém tivesse imposto um padrão para isso. E não existe um padrão além desse inventado. Se uma criança que ainda não aprendeu-o pôde olhar-me sem dó e sem julgamentos, então talvez quando as pessoas conseguirem desaprender as regras que separam beleza e feiúra, elas possam olhar-se como a garota do palio cinza.
...Mas não é uma tarefa simples.
Acontece que, depois daquele dia, eu decidi que vou ao menos tentar fazer algo a respeito. E foi por isso que escrevi esse flyer, que você está lendo. Encontrei nisso uma forma de ativismo ideólogico e não vou abandoná-lo, independente de quantas pessoas amassem e lancem ao chão perante os meus olhos esse texto que escrevi com sentimento e imprimi com meu dinheiro - vou continuar distribuindo-os em nome do bem estar que senti quando aquela menina me olhou. Porque eu desejo que todos os feios sejam olhados daquela forma um dia. E também os deficientes, os errantes e os viciados. Eu desejo um mundo em que as pessoas se olhem sem subliminaridades. Eu anseio por um mundo sem preconceito, e por isso vou continuar imprimindo e entregando panfletos.
Fico muito feliz por você ter lido esse texto no lugar de tê-lo amassado e jogado ao chão ou ignorado no tapete do carro; já que ele é extenso e não tem joguetes publicitários para prender sua atenção: acontece que normalmente as mensagens mais importantes não vêm em tinta fluorescente ou letra tamanho 36... Repasse a mensagem em nome de um mundo melhor.

terça-feira

Nossas páginas

"People are just people
They shouldn't make you nervous
People are just people like you..."
(Regina Spektor, Ghost Of Corporate Future)


Sempre ouvi dizer que todos somos legais até a segunda página. Estou começando a discordar. Afinal, todo mundo é legal exatamente depois da segunda página - na máscara somos todos clichés. É inegável que nas primeiras conversas com alguém estejamos todos encenando um papel, fingindo sermos o que melhor nos aprece, ou mostrando a nossa face mais trabalhada. E essa parte da relação é tediosa. Mais tarde, quando tirados os saltos e as maquiagens, é que a pessoa começa a mostrar quem ela realmente é. Somente lá pela quarta página é que podemos descobrir-lhe as reais qualidades e defeitos, sentir algo em relação a ela e ter um esboço de opinião a respeito. Antes disso, é tudo raso e fútil.
Mesmo porque julgar a pessoa até a segunda página é a maior injustiça. E se a casca dela não condiz com a sua? Isso não deveria significar que vocês não se darão bem. Quem já foi forçado a conviver com alguém cuja máscara lhe fosse repulsiva talvez concorde: depois da segunda página, quando não há mais tribo, classe social, time ou partido político, todos nós somos muito parecidos e capazes de afinidades. As primeiras páginas só servem para seccionar as pessoas, algo que eu acho extremamente inútil e triste. A diversidade da mentalidade humana é o que mais me encanta, não consigo concordar com a ideia de fugirmos de pensadores à priori diferentes.
Mas não posso fechar meus olhos ao fato de que estar rodeado por semelhantes gera conforto e é essencial, já que do contrário nos sentimos deslocados e frágeis e isso é muito desagradável. Insisto, porém, em que não passa de uma questão de ponto de vista: só iremos nos sentir estranhos longe de máscaras com as quais nos identificamos enquanto classificarmos as pessoas por tais máscaras. Uma vez entendido que essa casca é dispensável e estando-se decidido a olhar mais fundo, nós podemos compreender e sermos compreendidos por qualquer um. Sentirmo-nos deslocados é um erro da cultura imposta quando entendemos que o ser humano é nada além de um ser humano, em qualquer lugar. Aceitar e ser aceito só depende de lermos o trecho inteiro.

quarta-feira

Mentiras cômodas, futilidade agradável.


Há não muitos minutos estava me sentindo miserável, por motivos aparte. Não conseguia ficar em um cômodo fechado comigo mesma sem me irritar, não conseguia ouvir nada sem querer gritar. Gritar para espantar meu mau humor, gritar para expressar meu desespero, gritar para concretizar minha loucura. Tal angustia me dominou, e por mais que eu de certo modo soubesse que era uma simples TPM, que em segundos eu estaria tão feliz quanto um dia de sol solto em uma campina verde, que eram somente hormônios descontrolados existindo um dia a mais rumo à dominação global, por mais que eu soubesse de tudo isso, eu precisava extravasar, precisava fazer alguma coisa antes que aquele grito fizesse um nó em minha garganta e me asfixiasse.

Então peguei minhas moedas e um dos livros de auto-ajuda que eu tanto critico e que minha mãe tanto preza, talvez eu estivesse precisando deles. Comprei na sorveteria mais próxima o maior milk shake à venda. Eu sei, soa fútil. Sim, eu sou fútil. É, também odeio isso. Não, nunca fiz nada para mudar.

Tendo em mãos a dupla perfeita para um dia de fossa, percebi que voltar para casa não era o que meu espírito precisava. Então fui até a praça publica local e me sentei sozinha, com meu sonho calórico e minha caixa de sabedoria barata, próxima da natureza pacifica das arvores plantadas graças à qualquer projeto que mascarasse o egoísmo social e cercada pelo irônico cheiro doce de mendigos desprivilegiados graças ao mesmo egoísmo social.

Muitos dos que passavam me olhavam com olhos críticos e intrigados, me provando mais uma vez que a sociedade se tornou tão excêntrica que é considerado muito mais comum andar com o olhar baixo e o passo rápido rumo a qualquer lugar dominado pelo consumismo que se sentar próximo aos próprios sentimentos e deixá-los dominar um momento qualquer. Me dói admitir que nesta sociedade excêntrica o comum é dado por certo.

O caso é que, muito oposto à idéia que minha estúpida futilidade juvenil havia me imposto, livros de auto-ajuda não são somente clichês quaisquer postos entre palavras para confortar pessoas deprimidas, na verdade hoje descobri que livros de auto-ajuda são de fato idéias propostas em momentos de paz e que não são formados por infelizes clichês que servem para confortar e sim de sabedorias particulares que servem para questionar clichês confortantes.

Esta é uma mentira cega que a futilidade do mundo me propôs e que eu aceitei prontamente. Em quantas outras mentiras disfarçadas temos acreditado comodamente?