"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

domingo

A minha coisa de cabelos castanhos

Passei pela sala, minha irmã tava assistindo um concurso de beleza.

_ Vai assistir algo que não diminua teu cérebro, Giovana. Teus neurônios tão se suicidando!


_ Lucas, vê se me erra. Por que não volta pros teus quadrinhos infantis, hein? Aquilo sim é intelectualidade. Aposto que teu QI triplica a cada fala de 100 caracteres.


Mas eu nem tava lendo quadrinhos. E não eram infantis, mas ela nunca tinha aberto um. Saí no quintal, me apoiei no varal pelas juntas dos braços e soltei o peso. O varal é meio baixo e eu sou meio alto. Fiquei passando o pé descalço no chão molhado, choveu agora há pouco, e fiquei encarando o céu com os olhos espremidos, acho que eu devo passar menos horas enfiado no meu quarto ou vou acabar fotofóbico. Tanto faz, nem gosto muito de sol de qualquer jeito.


Depois de um tempinho o braço começou a doer, daí andei um pouco em círculos e voltei pra porcaria do meu quarto. Deitei na cama. Caralho, que tédio. Talvez eu devesse mesmo ir ler um quadrinho. Sabe, eu era bem ligado nessa de quadrinhos, me divertia à beça. Sei lá por que, mas ultimamente perdeu a graça. As publicações novas não estão prendendo meu interesse, e os clássicos que eu já conheço de cor se tornaram insuportavelmente monótonos. A Giovana deve estar certa. Acho que eu fiquei velho pra aquela merda.


Sentei no computador e entrei no msn. Tem que ter um desgraçado à toa pra sair comigo. Rolei a barra. Ninguém de interessante, que merda. Fui ao youtube, mas que estranho, nenhuma das bandas que eu conheço surtiram qualquer efeito. Aí abri outra aba e digitei por ninfetas, no google imagens. Eu poderia procurar pornografia de verdade, é que sei lá, tô quase bêbado de preguiça, quero algo leve.


Umas menininhas pirralhas, que coisa não?, e umas outras anônimas no momento daquelas fotos provavelmente tão entediadas quanto eu estou agora. Fui passando as páginas, mas nem deu vontade de continuar. Uns peitos feios, disformes. Deixa pra lá. Aí notei que a Julinha tava online. Julinha é minha amiga. Às vezes a gente se pega, outras vezes a gente só conversa. É que a Julinha é meio criança de vez em quando, mas ela é engraçada. Cliquei no nome dela e disse que tava indo pra lá, ela nem respondeu mas eu fui mesmo assim. Ela mora aqui perto. Fui saindo, aí a mala da minha irmã chamou querendo saber quando eu voltava.


_ Sei lá Gi, antes do natal.


_ Idiota.


_ Fala pra mãe que eu fui na casa da Julia.


Aí ela respondeu com um grunhido afirmativo e eu saí. Sei lá, eu gosto da minha irmã. Ela é meio imbecil às vezes mas é coisa da idade. O porteiro já me conhecia, então me deixou entrar, aí subi com o elevador e cheguei a mão na porta. Aconteceu que tava o maior berreiro lá dentro, então eu não bati na porta. Era o pai dela gritando com ela. Hesitei por uns segundos, e quando eu ia decidindo que era melhor ir embora ouvi um barulho na maçaneta. A porta abriu e o pai dela saiu, transtornado e ofegante. Eu sai do caminho dele. Ele se sobressaltou um pouco com a minha presença, mas bem pouco. Aí parou na minha frente, olhou pra minha cara, primeiro com vestígios da raiva que expressara há pouco, mas logo em seguida ele soltou o ar que estufava-lhe o peito e me lançou um olhar de derrota. Eu fiquei meio sem reação, não sabia se devia abraçar ele ou ficar puto por ele ter gritado daquele jeito com a minha amiga, ou simplesmente correr antes que toda aquela fúria voltasse e se virasse pro meu lado. Mas acabei só ficando parado, com cara de taxo. Aí o pai dela saiu e desceu pelas escadas, sabe-se lá para onde, sem transparecer mais nada. Eu entrei.


A cena era meio triste. A Julinha tava sentada no canto da sala, abraçada com os joelhos, chorando aos soluços, parecia uma criancinha indefesa. A Julia tem muito disso. Tem hora que ela é inconsequente e maluquinha, e impera sobre a turma toda. Mas tem outras horas que ela simplesmente fica vulnerável e desprotegida, e por algum motivo nessas horas eu fico louco de vontade de abraçar ela bem forte, fazer um carinho e dizer que vai passar. Foi mais ou menos o que eu fiz.


Fechei a porta e tranquei, a chave ainda estava lá, e fui me sentar ao lado dela. Ela só levantou o rosto pra ver quem era, mas continuou exatamente como estava. A gente ficou lá em silêncio uns quarenta minutos, eu encostado na parede e ela encolhida em mim, e as lágrimas foram acabando. Findo esse tempo, ela disse que tava com fome. Eu sei que eu devia ter levantado e ido arrumar algo pra ela comer, mas se eu deixasse aquele momento de fragilidade escapar, ela nunca ia me falar exatamente o que estava acontecendo. A Julinha é bem assim. Ela é completamente legível por suas atitudes e comentários, mas tirando os momentos de desgraça em que abaixa todas os muros, ela nunca fala qual é a real. Ela é carente pra caramba, mas odeia expor os fatos. Eu não sei do que ela tem medo, mas sei que ela se sente tão confortável nessa instabilidade que evita racionalizar. Ohei pra cara dela e perguntei bem sério:


_ Porque ele tava gritando?


Ela ficou em silêncio. Deu pra ver que ela estava metade lidando com a dificuldade que tinha pra responder, e metade planejando como desconversar. Mas acabou soltando:


_ Ele tá exausto de mim, assim como todo mundo. E ele está certo. Eu tenho feito todo mundo louco. Eu tô fazendo de tudo pra tornar mais doloroso pra ele, mas eu sei que não foi culpa dele. Sei mesmo. É que eu sinto muito ódio, e tenho descontado nele, por ele ser o único que tem obrigação jurídica de me suportar, mas também em mim mesma. Por isso tanta inconsequência. Por isso tanta resposta ríspida. Mas eu tô acabando com ele, e hoje ele precisou gritar. Ele disse que eu sou a maior egoísta do mundo por querer piorar tudo pra todo mundo só porque eu não consigo superar. Ele foi pra um hotel e me deixou o número dele. Disse que ele também tem algo para superar, mas que se eu mudar de ideia, é só eu ligar e ele volta pra cá, pra nós passarmos por isso juntos. Aí eu gritei que ele queria era reconstruir a vida dele com qualquer vadia e deixar eu me me matar que nem ela fez, que queria se livrar do estorvo que eu sou assim como se livrou dela, ou então deixar eu me perder no mundo pra parar de impedir a felicidade dele. Eu disse um milhão de bobagens, todas as piores que eu fui capaz de pensar. Aí ele respondeu que queria que eu entendesse a realidade, e saiu. Mas eu sei que tô errada e ele tá certo. Eu tô com muita fome.


Eu fiquei impressionado com a sinceridade e completamente assustado. Aquela era uma Julia que eu nunca conhecera. Ela falou baixo e lentamente, sem perder o fluxo, e eu estava comovido por ela ter conseguido. Ela definitivamente precisava dizer aquilo em voz alta. Isso foi de uma maturidade que ninguém jamais poderia supor que aquela Julia drogadinha e hostil pudesse ter. O que aconteceu foi que a mãe dela se suicidou, faz acho que cinco meses. A mãe era maníaco depressiva, e um dia simplesmente resolveu tomar uma coleção de comprimidos pra foder com a vida de todo mundo, inclusive a própria. A Julia ficou revoltada, e daí saiu toda essa merda. Levantei e fui até a geladeira, que estava caoticamente vazia. Ela e pai estavam arrasados, nada estava certo pra eles, logo a despesa não estava sendo feita regularmente. Acabei arrumando um macarrão, ajeitei a mesa e tudo, e depois de meia hora fui até a sala e levantei a Julia, que ainda estava no mesmo canto, mas agora toda esparramada e com os olhos vagos. Levei ela até a mesa, comemos em relativo silêncio - ela só agradeceu e elogiou a comida - e quando terminamos, ela me surpreendeu ainda mais: ela sorriu. Levantou, chegou perto de mim, se ajoelhou em frente à minha cadeira, e sorriu de boca e olhos de um jeito todo lindo. O cabelo dela estava uma zona, o nariz vermelho e o rosto inchado, com algumas marcas de unha pelo rosto, mas mesmo assim ficou bonita quando sorriu. Mais bonita ainda porque sorriu pra mim. Aí ela disse "obrigada", beijou minha boca e me deu um abraço terno. Depois me olhou com olhos convidativos, meio safados e um tanto debochados, comprimiu o sorriso, pegou minha mão e foi me guiando até o banheiro, ligou o chuveiro, tirou a roupa e sentou na banheira, de costas pra mim, e foi jogando a cabeça pra trás até que pudesse me ver, de ponta cabeça pela perspetiva dela. Então ela me lançou a maior risada de criança, e eu acabei indo ensaboar o cabelo dela com o xampu. Depois levei ela pro quarto, estendi um cobertor e fiquei lá, olhando ela dormir. Ela era super bonita e eu estava louco de vontade, mas acabei sendo só um pai. Na verdade eu sabia que naquela hora ela precisava mesmo era de um pai, ainda que não soubesse. Na manhã seguinte minha mãe ligou perguntando quando eu voltava, e eu disse que ainda tava na casa dela e tal, aí me lembrei do puta vazio existencial que estava me corroendo antes de eu entrar naquele apartamento. Acho que todo mundo devia usar suas horas de tédio maluco pra cuidar de alguma coisa. Qualquer coisa. Isso preenche, tá ligado? Isso faz bem, e é mais útil. Agora eu vou levar a minha coisa pra tomar um sorvete. Só não consigo decidir se vai ser um programa pai e filha ou um encontro de casalzinho. Pretendo ficar aqui mais uns dias, e depois eu sei que ela vai ligar pro pai dela e ter uma conversa longa e pessoal. Aí eu volto pros meus gibis.