"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

quinta-feira

Lilie

Quinta à noite, os carros não dão a mínima para a maldita pedestre na chuva. E nem ela. Ela meio que estava gostando de se molhar, de molhar os papeis na bolsa. Eram cartas que ela recebera da família no último ano. Haviam feito um trato: não se veriam por um tempo. Quanto tempo? O tempo que precisasse, ela disse. O nome dela era Jéssica. Era. Depois daquela conversa ela desistiu de ter nome. Aconteceu, simplesmente. Foi aquele tipo de coisa que precisava acontecer com ou sem o consentimento de alguém. E bom, ninguém consentiu, não exatamente. Só calaram. Não tinham forças para parar, segurar, consertar. Nem para tentar. O que houve foi que Jéssica era uma daquelas adolescentes idiotas que pensam que sabem tudo, e ela sempre fez besteiras maiores que as quais com que podia arcar. Ela quase sabia disso. Mas só quase. Foi entender mesmo quando precisou dormir na calçada e acordou com dores. Que seja. Jéssica era imatura, e conhecia bem as palavras. Talvez bem não... Mas as conhecia. E palavras fortes em uma boca imatura nunca pode dar em coisa boa. Não dava. Ela perdia amigas e machucava garotos com a maior frequência. Sem falar que também se machucava com tais palavras. Como não poderia deixar de ser, machucava a família. E claro que fazia tudo isso consciente. Vale lembrar que vez ou outra Jéssica tentava se frear - mas nunca conseguiu, pelo que se sabe. Acabou passando dos limites com a família um dia, e sabendo disso propôs ficar longe durante o tempo necessário. Não foi fácil nem bonito, e um tanto longe de divertido. No primeiro dia ela andou para longe. No segundo, comeu a comida industrializada que trazia na bolsa. No terceiro gastou algum dinheiro com comida e decidiu alugar um quarto. Foi parar em um fim de mundo, e notou que precisaria de um emprego. Começou a desanimar, a se arrepender, mas era orgulhosa. Em uma semana conseguiu emprego em uma lanchonete, o que foi um alívio já que a dívida no pensionato estava começando a ficar preocupante. Mudou para um hotel barato com o primeiro salário, e decidiu infantilmente ir a uma festa com uma colega do trabalho. A garota se chamava Amanda, era uns dois anos mais velha que Lilie - já não usava seu nome verdadeiro, doía-lhe ser chamada por tal -, e vivia em circunstâncias parecidas com as dela, embora por motivos diferentes. Ficara grávida em pleno colegial, e, não que tenha sido propriamente expulsa de casa, o orgulho adolescente é tão complicado... Acabou brigando com o namorado e sofrendo aborto espontâneo em menos de dois meses, mas já eram águas passadas. Foram à festa, que fez toda a diferença. Lá conheceram Sabrina, uma trintona de quem logo se tornaram grandes amigas. Sabrina se divorciara recentemente e, embora mais velha, não era psicologicamente muito mais complexa que as outras duas. Aconteceu que encontram umas nas outras apoio, algo como a família que as faltava, e boas companhias para noites vazias. Foram morar juntas - tudo no nome de Sabrina, que era, nas aparências, a mãe das outras duas. Mas só nas aparências. Até que as três se pareciam fisicamente: todas com cabelos e olhos castanhos, lábios grossos. Já havia se passado cinco meses desde que Lilie saira de casa. Mandou uma carta aos pais informando endereço, pedindo para que não a visitassem ou informassem tal endereço e contando que estava bem; enviou também uma foto das três juntas, e se desculpou por tudo em entrelinhas. Uns nove dias depois começou a receber correspondência, e se tornou tradição: toda quinzena a família mandava uma carta. Lilie nunca respondeu a nenhuma, mas eles continuavam a mandar. O sucesso da garota com a reconciliação incentivou Amanda a procurar a própria mãe, com o que não obteve êxito. A mãe dela havia se mudado, e muita coisa fora dita, gritada, tanto que Amanda logo achou melhor deixar tudo como estava. Daí pra frente foi tudo tranquilidade: Sabrina acabou encontrando um pretendente, Amanda voltou a sair com garotos e Lilie conseguiu emprego como funcionária de uma loja de roupas em um bom bairro. Bom, nem tudo. Lilie andava triste. As cartas lembravam-na de quem ela fora, lembravam-na de que ela tinha tudo, de que se colocara naquilo por vontade própria, e também lembravam-na, embora por palavras austeras, de que poderia receber amor caso pedisse. Ela se sentia culpada, novamente, pelos erros que cometera. Bastou ler o primeiro "querida" em uma das cartas para desabar. Então voltou a sentir aquela culpa e aquela frustração, e também a descontá-las nas pessoas mais próximas. Ela quase fez tudo de novo. Mas na terceira briga, quando viu nas amigas o mesmo rancor que levara anos para despertar na antiga casa, ela se abaixou. Escorregou pela parede e chorou, sem dignidade nenhuma, até fazer as colegas sentirem pena. Quando parou de soluçar se desculpou, culpou aos hormônios e foi dormir. As outras duas acreditaram. Depois decidiu que iria consertar as coisas. Hoje acordou, deixou um bilhete na garrafa de café avisando que voltaria tarde e saiu, levando as cartas. É uma quinta feira de manhã.