"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

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domingo

Confissão (continuação)

Felipe olhou o visor do celular: Andressa, obviamente. Primeiramente sentiu raiva. Ele precisava de reclusão, de tempo, de se organizar, e ela era - sempre fora - incapaz de dar o devido espaço às pessoas. Mesmo assim, devido à culpa por não estar sendo honesto com, Felipe acabou atendendo calmamente o celular. Ele tivera uma resolução nos últimos minutos.
- Alô?
- Felipe, eu te odeio.
- O que? Não, você não me odeia Andressa.
- Você é um idiota. Tem razão, eu não te odeio, mas você é o maior cretino. Você não entende que está errado? Mesmo que você tenha me contado que me traiu, mesmo que você tenha terminado comigo no lugar de manter dois relacionamentos, você é um idiota. Um estúpido! Por que você fez isso, seu imbecil? Por quê?
E Andressa começou a chorar. Felipe levantou-se do meio fio e deu alguns passos a frente, mas sinalizou para que Ed continuasse ali, ele tinha tomado uma decisão. Doía muito em Felipe ouvir os soluços da menina. A relação deles já não estava boa e ela não o compreendia, mas depois de três anos é natural que se tenha um grande afeto pela outra pessoa, e ouvi-la chorar por algo que sequer era verdade era muito difícil. Foi então que Felipe olhou para uma parede, puxou o ar, criou coragem, e falou:
- Andressa, eu sou gay.
Ela parou de chorar no mesmo instante. Ed olhou-o, muito supreso. Ele olhou de volta para Ed, de relance, e voltou a encarar a parede, enquanto sua cabeça girava e reverberava, sentindo uma grande felicidade, um alívio estarrecedor, e muito, muito medo. Tudo isso durou apenas um segundo, que foi o tempo que Andressa levou para se recompôr e então, claro, soltar um grande "O QUÊ???". Felipe sorriu. Agora era tudo muito mais fácil. Sentou-se novamente no meio fio, ao lado de Ed, e respondeu a tudo o que ela perguntou. Disse que ela era uma menina muito íntegra, que tinha várias qualidades, que era sim atraente - e nada disso era mentira -, mas que essa é o tipo de coisa que não acontece, pois simplesmente é. Depois disse que queria vê-la, no dia seguinte, abraçá-la e pedir as devidas desculpas pelo sofrimento que a fizera ter com aquela mentira sobre traição, que queria olhar nos olhos dela e contar o que sentia, que queria dar a ela a chance de compreendê-lo, para que ela pudesse aceitar ou não, e também decidir como seria a relação dos dois dali para frente. Disse, então, que estava na festa de aniversário do avô, que não via a hora de explicar tudo a ela, mas que por hora era melhor que ela absorvesse a informação e pensasse a respeito, que ambos precisavam de tempo antes de esclarecerem tudo o que havia para ser esclarecido, e que ainda a amava muito, porém de uma forma diferente da que ela imaginava. Estabeleceram horário e local, despediram-se e então desligaram o celular.
Felipe colocou o telefone no bolso ainda olhando para a frente, um pouco inseguro sobre o que estaria reservado na feição do primo, e então, vagarosamente, virou-se para encará-lo. Ed estava, a princípio, muito surpreso. Depois fez-se grave. Então ele abriu um grande sorriso, deu-lhe um olhar de cumplicidade e disse:
- Mas por que diabos tu nunca me falou isso???
E abraçou Felipe em um gesto de amizade. Quem estava perplexo, afinal, era Felipe. De tudo o que ele imaginou como reação depois de confessar sua homossexualidade, um sorriso e um abraço era o que ele menos esperava. Felipe expôs, então, tal pensamento, e Ed gargalhou em resposta.
- Felipe, isso não significa nada meu velho. O primeiro passo para destronar o preconceito da cultura da gente é não ser preconceituoso contigo mesmo, mano. Como tu tem coragem de ter vergonha de ser gay? E como é que tu acha que alguém vai olhar pra tua homossexualidade sem julgar se tu mesmo tem vergonha disso? Felipe, brother, pessoas são só pessoas, independente do sexo ou da sexualidade. Beijar homem, beijar mulher, foder homem ou foder mulher não muda teu caráter, não muda quem você é. Eu, na verdade, acho que estar aberto a se relacionar com pessoas - homens e mulheres - te deixa mais disponível a conhecer gente que possa te ensinar algo sobre essa vida, e é por isso que eu não me limito com isso. E tu quer saber? Nada é assim tão sério quando a gente sabe que não é tão sério. Para de achar que ser diferente é grave, só aí é que tu vai conseguir sentir prazer em não ser robô.
Felipe olhava-o boquiaberto - Ed definitivamente ganhara um novo discípulo para sua filosofia informal. As palavras de Edmundo haviam tocado-o muito fundo. Foram tudo o que ele sempre sussurrara à própria consciência, mas nunca teve a coragem de ouvir. Finalmente, vendo alguém assim tão nobre e tão completo, e ao mesmo tempo tão simples, Felipe sentiu-se capaz de fazer aquilo que sempre quisera: deu a Ed o seu primeiro beijo de verdade, o primeiro sincero, o primeiro que ele realmente quis dar, ao qual Ed correspondeu na mais completa harmonia - e beijo nenhum poderia ter sido mais lindo.

--- Fim ---

Sua voz

Sentados numa mesa de bar, não escuto a sua voz. Você fala sobre o futuro, e eu olho o seu sorriso. Tento ler seus lábios, já que a música está muito alta. Sua boca, levemente inclinada para a direita, se move rápido; desisto de entender o que está dizendo. Então opto por ouvir a música, e continuo sorrindo e acenando conforme você proporciona minhas deixas. Seus dentes, tão brancos, levemente tortos, as mãos gesticulando sem parar. Você está animada hoje. Sempre tão entusiasta, adora construir histórias hipotéticas sobre nós dois. Mas você já não é aquela garotinha ingênua da praça sete. Você embaraça caminhos alternativos em suas histórias, nunca se esquece de uma segunda opção, da saída alternativa caso nosso amor não dê certo. Você se resguarda, de mim. Pensa que eu não percebo, não é, meu amor? Mas eu venho anotando cada desarmar de sorriso, desde os nossos quinze anos. E isso é o que eu mais amo em você. Sua independência, sua personalidade forte, mandona. Mas isso não desmerece sua meiguice, o calor constante da sua pele, seu cheiro limpo, suas mãos macias. Nem o charme dos seus palavrões esporádicos, ou das suas crises de mau humor. Você andou amadurecendo, meu amor. Já não me deixa ler seus olhos quando eu os repreendo. Nem mesmo me conta suas frustrações mais embaraçosas. E eu também admiro-lhe isso. Aprendeu sozinha que não é bom que conheçam nossas fraquezas, especialmente aqueles mais próximos. Só ainda não percebeu que existem alguns que te conhecem de berço, e que desses você não se pode esconder. Mesmo assim, acho bonitinhas suas tentativas de dissimular. E agora você aqui, falando comigo, pra mim, de mim; daquele jeitinho que me faz pensar que você se importa. Sabe, um dia eu planejei meu futuro com você. Um dia eu levei bem a sério essas suas palavras, misturadas com a bossa nova do bar. Afoguei-me nelas, adorei o gosto. Mas então, deliciosamente vagante daquele seu mundo, eu entrei em um dos caminhos bifurcados que você guardava para si. Longe de seus olhos eu inspecionei cada metro quadrado das novas terras, com sorriso vitorioso de explorador. E então você me enxotou. Desmanchou aquele sorriso, desviou aquele olhar. E foi ali que descobri que você crescia. Sabe, meu amor, sua maturidade me enternece. É muito inteligente tirar sua vida do alcance daquele garoto mal vestido com a barba por fazer e sem perspectiva de futuro. Muito inteligente tirar seu sucesso das garras do seu amigo enamorado. De mim. Agora você segura meu braço, os olhos bem abertos, pergunta-me se concordo. Sim, meu amor, eu concordo com tudo em você. "Por quê?". Porque você mudou, meu amor.