"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley
segunda-feira
-
domingo
Advertir vs divertir

quinta-feira
Cotidiano
Passei por diálogos idealizados com as pessoas as quais admiro, depois por viagens que gostaria de fazer. Imaginei cada mínima conversa, cada olhar e cada cor. Pensei em faculdade, na decoração que um dia darei à minha casa; pensei nos sufocos que hei de passar com a minha filha (que, como torce minha mãe, - e eu também, confesso - há de ser uma chata de galochas), brinquei com minhas expressões no espelhinho do estojo; me chateei com o hipotético chefe cruel...
Pensei até nas pessoas que não suporto. Remoí as respostas que nunca dei, imaginei o sangue nos rostos que eu quis - ainda quero - ralar no asfalto; pensei até naquele cara que me chutou por insegurança.
Quando me cansei, olhei pro relógio: hora do banho. Entrei neste distraída, ainda acho que não lavei tudo o que devia. Então fiquei curtindo a água quente, me recusando a olhar pra baixo, tamanho o desgosto que sei que sentiria. Desenhei no espelho, deixei a bucha cheia de espuma, e me enrolei na toalha.
Aí almocei, pouco, juntei meus livros e saí correndo pra não perder o ônibus. Entrei nele, aquele calor, e me sentei no primeiro banco livre que encontrei. Analisei calmamente cada um que entrou, fazendo suposições sobre as respectivas personalidades - adoro fazê-las.
Pego esse ônibus todos os dias há quase dois anos. Já me familiarizei com algumas figuras. Uma professora sorridente, que sempre trata bem os velhinhos, uma garota dark, cuja voz é musical e com quem eu sempre quis conversar; e inúmeras outras personalidades quaisquer.
Duas me chamam a atenção: um homem (que eu vi pela primeira vez quando lia "Capitães da areia" e que por isso ficou eternamente gravado no meu subconsciente como o padre do livro) de meia idade, com traços miúdos, cabelo ralo e insegurança gritante com quem eu S-E-M-P-R-E quis conversar, mas que, embora me olhe todos os dias e escute as minhas conversas quando as profiro, nunca se sentou ao meu lado, ainda que eu sempre guarde-lhe um lugar; e um outro homem, que é a personificação do meu medo mais profundo: um típico fracassado de romance naturalista. Me corta o coração falar assim desse homem, tal qual me corta olhá-lo. Dia desses, inconformada com a aflição que sentia ao olhá-lo, comecei a me investigar o porquê. Descobri que tenho dó do desgraçado. As orelhas de abano, a cabeça triangular, as entradas grandes, o bigode escuro, o olhar baixo e o uniforme de ajudante do supermercado classe C. Adoraria saber o que dizer para melhorar o dia daquele homem.
Outras pessoas passaram a roleta, e minha costumeira seção de "ódio-próprio", como gosto de chamar, começou. Mas nesse dia foi um pouco diferente. Ironizei três ou quatro dos meus traços caricaturais, mas uma voz em mim respondeu com compaixão.
- Hoje é o dia do amor próprio, Marina? - respondeu outra voz.
A primeira riu das outras duas, e continuou. O padre de "Capitães da areia" entrou e passou reto. Resolvi parar de me depreciar, eu merecia ter um dia de descanso.
Suei mais algumas gotas até o ônibus parar na porta da escola, onde eu desci. Olhei para meus "coleguinhas", todos tão cheirosos (irritantemente cheirosos, juro que me coça o nariz) e arrumados, e senti pena deles. Deles ou de mim, não sei ao certo. Tentei passar o cartão, que nunca me dá mole, e na terceira vez consegui. Entrei, subi a rampa, sentindo neste ponto do dia a vontade de sumir que sempre eu sinto, então passei reto pelos meus colegas e adentrei a sala. Fui ao meu lugar, me sentei, e então percebi que esquecera o livro. Não é cultura, tampouco interesse. É mais a minha saída fácil para disfarçar os amigos que não tenho. Bom, de qualquer modo, sem o livro fui forçada a abrir o material e fingir que estudava algo.
A aula começou, tentei me concentrar - mas foi em vão. Tudo bem, afinal, eu havia me dado esse dia de presente. Voei a aula toda, me prendendo a filminhos que eu protagonizava; mas nem sempre como o moçinho. Adoro os meus filminhos. Neles eu nunca esqueço as palavras, nunca sou ridicularizada, e, sobretudo, nunca sou pega em flagrante. Neles eu até convenço àquelas pessoas que eu sei tão superiores de que eu também sou digna do cair do queixo delas. Esse, em particular era um drama, no qual eu era terminantemente humilhada por obra de uma tentativa de psicologia inversa. Contudo; o professor passou outro exercício e a ideia me fugiu.
As aulas continuaram, cansativas, minha barriga roncando graças ao almoço fraco e ao lanche que eu esquecera, e a bexiga explodindo, por obra da minha preguiça de descer a rampa e ir ao banheiro. Ao som do sinal de saída, me retirei. Não disse nenhum "tchau", e não, isso não me incomoda. Entrei no carro, abaixei o som como eu sempre faço (meu chofer - mentira, é perueiro - tem mania de som no último) e me entreguei a alguma conversa sem nexo com o motorista, que eu digo meu amigo. Ele me conta todos os segredos dele, e eu finjo que me importo, até dou conselhos; ao final do que eu conto os meus, sabendo que ele não está ouvindo nem uma palavra, mas os digo mesmo assim, pelo conforto barato que isso me dá. Nesse dia não foi diferente.
Entrei em casa, tirei a camisa de uniforme, a calça jeans, o tênis e as meias - tomando, é claro, o cuidado de não olhar pro espelho - e me enfiei em uma camisa gigante, que uso como vestido. Comi muito mais do que precisava, fui até o quarto, coloquei meu cd mais recente no rádio - aquele com as únicas vinte musicas grunge que conheço - me embolei na cama e chorei um pouco. Nem mesmo sei dizer por que. Acho que me dá prazer. Findo o cd, peguei o mesmo livro das primeiras horas da manhã e tentei costurar os olhos na mesmíssima linha. Fiquei com sono, fechei-o e dormi: amanhã começaria tudo de novo.
domingo
Sua voz
quinta-feira
Tutela do Brasil
sexta-feira
Exentricismos forçados
Eu só consigo dar risada dessa necessidade de notabilidade - mas é obvio, e vocês sabem, que se trata de uma risada artificial para aludir alguma altivez. Enfim, ouço por todo lado que a humanindade perdeu os princípios. Aos que reproduzem a dita frase (ainda que só por impulso pré condicionado) eu acrescento: Acalmem-se, meus queridos, é só a moda da vez.
Ainda assim, me preocupa essa tendência poser. Quer dizer, como se o mundo já não fosse ridículo o suficiente com filhinhos de papai fingindo princípios comunistas em cima de um skate, agora temos que aturar cabeças ocas verbalizando revoltas infundadas e ocupando o tempo do jornal matutino com acidentes de trânsito causados por alcoolismo?
quinta-feira
Sobre lendas e espadas afiadas
O pior é que as prateleiras estão abarrotadas dos mesmos. E parece que a ideia de refúgio funciona em grande parte do público consumidor. Mesmo o cinema vem sendo empesteado. O triste é que eu adoro épicos.
Mas o que realmente me chateia é estar percebendo, só agora, como a neomitologia neles presente - pois em se tratando de uma mitologia intensamente modificada, de uma forma, aliás, que eu não acredito permissível, não cabe mais nos limiares da palavra "mitologia" -, enfim, como a neomitologia neles presente é, simples assim, a representação simbólica dos ideais humanos.
No último dos épicos (impresso em escala industrial com fins meramente pecuniários) que li, os elfos eram ateus. ATEUS! Quer dizer, além de lindos, nobres, fortes, talentosos e todo o mais que a humanidade almeja, eles eram independentes, livres de qualquer força superior. Não contentes, eram também imortais e eternamente jovens.
Se a mitologia tradicional era destinada a educar e moldar o caráter humano com alegorias que melhor traduzissem uma sabedoria popular necessária à todas as mentes pelo bom funcionamento de uma sociedade, hoje, o que restou dela só existe para promover os dogmas do capitalismo - diluídos e mascarados, de forma não só aceitável como admirável, digna de ser posta como ideal.
O digo porque não posso entender por um prisma menos pragmático o feitiche por escravizar a humanidade e dominar o mundo (seja superior, seja melhor, subjugue tudo pelo próprio sucesso) dos nossos últimos vilões, ou ainda a lealdade inexorável em prol da mentalidade dominante da determinada época (defendam o modelo, se corrompam para credibilizar o situacional way of life) dos nossos últimos heróis.
Isso, se acompanhado pela arte dos anões, a imperturbabilidade das dríades, a beleza das fadas, a altivez das sereias, a graça dos dragões e até com a força dos minotauros, torna impossível de ser ignorada a essência atual dos épicos: inspirar, frustrar, gerar novas necessidades - o infalível fazer vender.
Certo, revoltante. Mas, se me dão licença, preciso preencher o cadastro da loja virtual ao lado para efetuar o pedido da minha próxima frustração brochura ilustrada 344 páginas em edição especial - promoção relâmpago!
sábado
- Não.
- Por quê?
- Porque eu não sou quem eu gostaria de ser.
- Alguém é?
- Não sei.
- Ninguém é.
- Por quê?
- Porque querer ser subentende não ser.
- Então a felicidade não existe.
- Não.
- Então por que a pergunta?
- Para provar minha teoria.
- Para quem?
- Para mim.
- Por quê?
- Para me consolar.
- Quanto a quê?
- Minha felicidade.
- Entristece-lhe?
- O tempo todo.
- Como?
- Fazendo-me egoísta.
- ...
- Egoísta. Insensível a dores alheias.
- Então todos os felizes são egoístas?
- Sim, exceto os infelizes.
- Mas os infelizes não são felizes!
- Por isso eu digo que o são.
- Você é louco.
- Provavelmente...
- Felicidade não existe.
- Não.
- Então ninguém é egoísta.
- Eu sou.
- E por isso é feliz?
- Você entendeu a teoria.
domingo
SIQUEIRA, Humanitas Silva
terça-feira
Minha inexatidão
o olhar de censura
o cheiro de chuva
a fofoca que ninguém contou
a panela de brigadeiro
o trânsito das sete horas
a briga de rua com torcida
o CD riscado
o pé sujo
a silhueta de um sorriso
o livro grosso e chato
o café quente demais
a impotência sexual
a história repetida
a ideia sem nexo
o clichê hollywoodiano
o plano maquiavélico
o vizinho implicante
a verruga com pelo
sexta-feira
Quem sou eu
Mas se me perguntarem Quem sou Eu...
segunda-feira
Amor platônico?

O EUA é uma moçinha na moda, daquelas que lêem revista teen e usam calça colorida.
Tropeços

domingo
Um minuto sem verdade

Eu quero um pouco da hipocrisia burguesa, da vida inventada, da classe imaginária. Quero um pouco do glamour, dos cortejos, da burrice bem polida. Quero um pouco daquela maquiagem, e um pouco daquele sorriso estampado. Quero ouvir só coisas belas, e falar só o que quiserem ouvir. Quero um minuto sem verdade.
sexta-feira
Querido Amigo,
sábado
Sobre a ataraxia politica.

sexta-feira
E no seu sorriso já havia garras.
Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas fotografias Leónie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar de sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.
- Ah! homens! homens!... sussurou ela de envolta com um suspiro."
Aluísio Azevedo
quinta-feira
Pelos becos.

Costumava ser feliz, mas foi ficando cada vez mais quieto. E eu percebi o silêncio. Por um lado ele me acalmava, esclarecia muita coisa... Mas não demorou pra eu cansar de entender. De repente eu só queria parar de saber, e de repente a minha própria voz se tornou inconveniente. Já gritei no travesseiro mais de uma vez, já puxei meus próprios cabelos tantas outras, e então comecei a fazer roxos nos meus próprios braços. O que eu via no espelho era tão irritante quanto tudo o que eu via na televisão. Resolvi mudar de plano. Aluguei tantos livros quanto eu era capaz de ler, me obriguei a ouvir música em qualquer tempo livre, e até que consegui me calar por um tempo. Mas vez ou outra, a solidão me pegava. Cogitei suicídio. Depois decidi que era fraqueza. Cansei até do meu cachorro. As músicas que eu idolatrava de repente perderam o timbre, e o Deus que todo mundo louvava me parecia cada vez mais egocêntrico. Tentei ouvir algo mais sério, pesquisei os temas mais bizarros, e até visitei rituais satânicos. Não muito tempo depois, o obscuro também perdeu a graça. A sociedade me enojava, e eu estava começando a sentir repulsa por todos os que um dia conheci. Minha vida não tinha motivos e minha luta por opinião própria estava começando a me irritar. Mesmo assim, drogas sempre me pareceram estupidamente inúteis. Foi mais ou menos depois de uma semana sem trocar de roupa que meus pais explodiram. Já vinham tentando me "ajudar" há muito tempo, mas qualquer tentativa da parte deles era inútil. Eu estava perdida, e sabia disso. E eu não acreditava que um dia me encontraria. De todo modo, em uma segunda-feira nublada, me lembro bem, eles tentaram me levar a um psicólogo. Foram duas horas de consulta sem a mínima manifestação da minha voz. Vi os lábios da médica aconselhando procedimentos aos meus país, mas juro que não ouvi uma palavra. Eu estava aprendendo a me perder em mim também. Na mesma segunda-feira, tarde da noite, eu decidi que não queria mais encenar aquele teatrinho de familia feliz. Roubei algumas notas da carteira do meu pai, peguei meu melhor jeans, um agasalho e uma outra troca de roupa, joguei tudo no fundo de uma mochila e saí. Não fiquei na cidade nem mais um dia, e usei dos meus tributos femininos para conseguir transporte, comida e estadia. Vivi nas ruas por dois anos, de cidade em cidade, de bar em bar, me prostituindo para não trabalhar, e vivendo de favores e doações. Não reclamo, foi uma aventura incrível, mas depois de um tempo comecei a ficar enojada com a quantidade de garotas grávidas e miseráveis que me cercavam. Percebi que aquela vida não tinha mais brilho. A esta altura eu tinha lá meus dezessete anos, e decidi começar algo do qual me orgulhasse. Fui para a capital, consegui um emprego como ajudante de bibliotecária e uma vaga em um pensionato de baixo calão. Ainda usava dos meus seios para conseguir refeições quando estas me faltavam, mas agora com motivos mais nobres: queria estudar. Aprendi muito sozinha, e depois de sete meses como assistente de bibliotecária eu já tinha uma boa noção de matemática, historia e política. Com o dinheiro que eu juntara por estes meses, um concurso de bolsas bem sucedido e um emprego regular, segui vivendo. Os cinco anos seguintes foram apáticos, com alguns garotos e algumas amizades fingidas, mas nada daquela magia universitária; mesmo por que eu já conhecia a vida o bastante para não me empolgar com transas e alguns goles de vodka. Nunca mais vi minha familia, e acho que eles cansaram de me procurar lá pelo terceiro ano. Também acho que em algum dia desde então eles brindaram minha fuga, mas esta é uma opinião que não divulgo mais. Hoje, tenho minha própria mobília e um aluguel em dia. Não frequento igreja nenhuma, e também não sorrio na rua. Sei que o bem não passa de farsa e que a humanidade não é bonita, e aquele sonho imaturo de mudar o mundo e ter nome na história já ficou para trás. Não sou feliz, não tenho amigos, familia ou marido; mas se querem saber, me considero muito melhor que todas essas pessoas realizadas e amadas por aí. Por que eu... Eu sei o que nós criamos.