"Questão a resolver: como conciliar a crença que o mundo é, em grande parte, uma ilusão, com crença na necessidade de melhorar essa ilusão? Como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?" Aldous Huxley

quinta-feira

A revolução que eu hei de instigar

Por que estamos nos fechando, nos calando e fugindo? Quanto mais eu aprendo sobre o mundo de hoje - globalizado, urbanizado, industrializado, científico, racional e superlotado -, mais eu percebo que as pessoas estão agindo mal consigo.
Que não soe como propaganda socialista, mas na nossa sociedade as pessoas estão tão presas ao consumo ou ao trabalho que esquecem de zelar por sua própria condição como ser humano. De tão atarefados, percebo que o padrão é que elas ignorem valores pessoais, autoentendimento, as crises existenciais rotineiras e os anseios de mudança para gastarem seu precioso tempo em banalidades estéreis: o trabalho, os filmes e livros massificados, as compras e o transporte coletivo estão roubando-lhes preciosas horas de existência.
O problema é que esse costume vem se transvestindo em algo natural e, o mais preocupante, cultural. O perigo desse crescente desinteresse com questões psicológicas profundas é que os nossos sentimentos não se apagam simplesmente por não receberem atenção. Na verdade eles se agravam, pois, quando não são corrigidos ou canalizados no começo, sentimentos dessa espécie tendem a crescer e a tornarem-se comuns, de forma que, a cada dia que passa, fica mais difícil dar-se conta do absurdo daquela tristeza irracional, cuja tendência é ser considerada normal.
E é por isso que, dizem os jornais, o consumo de calmantes e antidepressivos atual é tão grande. As pessoas ignoram o próprio inconsciente pela dificuldade que representa tentar entendê-lo, e assim seus problemas escapam do controle. Quando esses problemas começam a realmente interferir na rotina de seu sujeito, este procura por drogas psiquiátricas para calarem-no sem gasto algum de tempo ou psicologia. E o resultado é a perda da consciência de si mesmo, da própria existência.
Quando alguém opta por alienar-se de si, a capacidade crítica e de criação dessa pessoa é seriamente danificada. Alguém que prefere fechar-se para os próprios sentimentos não é capaz de ajudar o mundo com novas ideias, não é sequer capaz de agir por alguma causa. Nós, cada um de nós, somos o ser mais importante do universo em nossa própria concepção - nascemos vivemos e morremos conosco, nossa lucidez para com nossa condição é o que há de mais precioso, deus nenhum pode salvar-nos da loucura de não estarmos presentes em nós mesmos. Logo, se abdicamos desse autoacompanhamento, se entregamos nosso estado psicológico ao acaso enquanto escondemos os sinais de que algo precisa ser feito quanto a eles com antidepressivos, por conseguinte, se deixamos de estar presentes em nós mesmos, como podemos estar presente em qualquer outro assunto? Como podemos ter alguma opinião política? Como podemos ter algo a dizer? A desimportância das pessoas consigo, que anda em voga no século XXI, causa mais que alta nos números de depressão e insatisfação: causa também alienação política, o que viabiliza corrupção, manipulação, injustiça - todos fontes de novas crises emocionais subconscientes.
As pessoas têm fechado os olhos para a própria condição na esperança de encontrarem fora de si a realização e o incentivo que as faltam, e aparentemente têm procurado-no no consumo e nos ídolos do rock, e estes, tenho dito, são drogas psiquiátricas providenciadas pelo governo para manter o povo quieto e distante como convém.
Entretanto toda droga para de fazer efeito um dia (não há meia vida que suporte tantas depressões consecutivas), e quando doses suficientes não puderem ser encontradas - o que eu não acho improvável, pois a desesperança, o niilismo e a preguiça existêncial podem reproduzir-se tão rápido quanto bactérias em um meio adequado, e a juventude hodierna é o meio adequado - quando doses suficientes não puderem ser encontradas, restar-nos-ão duas alternativas: enlouquecimento e suicídio, ou, minha preferida, revisão de conceitos.
Quando, finalmente, depois de muita decepção, as pessoas começarem a descobrir que reprimir suas tristezas por praticidade está fazendo-as doentes, quando entenderem que não há nada que resolva o vazio interno senão autobservação, elas irão (serão obrigadas a) dar um basta e enfrentar a si mesmas. Só depois dessa revolução pessoal será possível alguma mudança - mas, para os que dizem que a minha geração não tem valor histórico, eu peço mais algum tempo. (revoltas em Londres, revoltas no Chile, revoltas no Mundo Árabe... evite julgar um ser humano antes que ele amaduresça, é tão injusto...)

Uma instrospecção de um professor que hoje ganhou minha estima:
"A mente é a droga. Pensem, imaginem, que dá barato. Mas tomem cuidado, tudo tem uma contraindicação..."

domingo

Um papel que achei no chão

Queria começar dizendo que é bem mais fácil quando você é bonita. Não digo apenas pelo meu emprego de entregar flyers no semáforo, mas por tudo. Ser bonita facilita a vida: você pode cortar fila em casos de extrema urgência, respondem com mais vontade quando você pede informações na rua, conseguir favores torna-se mais fácil e as pessoas se aproximam com mais frequência. Não dá pra negar que o mundo é mais simpático com quem é bonito. E eu sou bem feia.
O que existe no interior de cada um é o mais importante, mas não se finjam inocentes: as aparências são essenciais sim e todos nós somos primeiramente julgados por elas. Mesmo porque é o interior, e rápido como as pessoas olham umas pras outras hoje em dia - afinal, existe gente demais -, ninguém faz muito mais que ver superficialmente a superfície. E não foi pleonasmo.
Quanto a escola, preciso desabafar, a escola é o inferno para quem não nasceu bonito. Os apelidinhos e o tal do bullying eu não vou nem me preocupar em descrever porque eu acredito que todos que já passaram pela escola - feios ou não - sabem exatamente do que se trata. Mas alguns detalhes somente nós, feios, sabemos de fato. A desconfiança dos professores, que secretamente acham-nos sempre mais plausíveis de culpa pelas taxinhas na cadeira ou qualquer ato que o valha. A chacota do sexo oposto, sempre pronto para humilhar nossos anseios. O espelho do banheiro feminino. O julgamento cruel e escancarado de todos para tudo o que você faz ou diz. As comparações...
E então o feio cresce, sai fora da escola, arruma um emprego e acha que tudo vai melhorar - mas é óbvio que seus chefes continuaram julgando-o, e as pessoas continuaram negando-se a pegar seus folhetos, e perder-se em um bairro nobre será sempre um grande problema.
Nós feios fomos fadados à vergonha, a vivermos escondidos e a passarmos ligeiros como animais, fomos rebaixados em termos existenciais, e temos que aceitar diariamente o nosso legado. Você, bonitinho, pode achar que é exagero, mas eu digo que não é. Por nossa desgraça existencial não ser assim tão explícita, quem não partilha do sentimento tende a achar que estamos mentindo. O ponto é que nada disso é perceptível exceto para aqueles que o sentem por experiência própria. É impossível explicar corretamente um preconceito que o interlocutor nunca sofreu. A causa do nosso sofrimento não é visível, mas ainda assim é concretamente sensível e sofrível e enorme para os que estão sob seu prisma de incidência.
Mas, acreditem ou não no suplício de ser feio, não é sobre isso que quero tratar por aqui. Quero falar sobre preconceito. Eu concluí o ensino médio, tenho e hoje dezenove anos, trabalho como estagiaria em uma pequena firma e estou matriculada em um curso profissionalizante. Entregar flyers é um trabalho extra para financiar um carro. Acontece que a obsessão humana pelas aparências já me fechou muitas portas, e eu não vou manter isso no anonimato. Empregos, relacionamentos, amizades, sucesso. Porque ninguém quer que alguém feio represente algo grande e importante, como ser oradora da turma, e muito menos se esse algo envolve dinheiro, no caso de uma empresa. Qual parte de ser gorda invalida-me para ser secretária? O mundo está ficando cego tamanha a importância que guardam ao âmbito visual, pois a visão a qual me refiro é aquela que absorve o sentido do quadro, e não apenas a fotografia. Eu não tenho o arquétipo propagado pela moda, mas minha fisiologia e meu espírito são iguais aos de todo mundo, e eu desejo e choro e sorrio e sonho e sinto tanto quanto qualquer um.
Semana passada eu estava entregando os panfletos quando cheguei em um palio cinza. Como eu estava andando entre as duas filas, entreguei-o para uma garotinha que tinha lá seus seis anos e estava ilicitamente no banco do acompanhante, de vidro escancarado, provavelmente divertindo-se a valer com o vento e a paisagem. Quando eu entreguei o papel, ela me olhou e sorriu com a maior sinceridade. Acho que ela ainda não sabia o que se convencionou que é feio, por isso foi capaz de me olhar nos olhos e sorrir com espontaneidade. E, sabem?, aquilo me motivou. Afinal, eu não seria feia se ninguém tivesse imposto um padrão para isso. E não existe um padrão além desse inventado. Se uma criança que ainda não aprendeu-o pôde olhar-me sem dó e sem julgamentos, então talvez quando as pessoas conseguirem desaprender as regras que separam beleza e feiúra, elas possam olhar-se como a garota do palio cinza.
...Mas não é uma tarefa simples.
Acontece que, depois daquele dia, eu decidi que vou ao menos tentar fazer algo a respeito. E foi por isso que escrevi esse flyer, que você está lendo. Encontrei nisso uma forma de ativismo ideólogico e não vou abandoná-lo, independente de quantas pessoas amassem e lancem ao chão perante os meus olhos esse texto que escrevi com sentimento e imprimi com meu dinheiro - vou continuar distribuindo-os em nome do bem estar que senti quando aquela menina me olhou. Porque eu desejo que todos os feios sejam olhados daquela forma um dia. E também os deficientes, os errantes e os viciados. Eu desejo um mundo em que as pessoas se olhem sem subliminaridades. Eu anseio por um mundo sem preconceito, e por isso vou continuar imprimindo e entregando panfletos.
Fico muito feliz por você ter lido esse texto no lugar de tê-lo amassado e jogado ao chão ou ignorado no tapete do carro; já que ele é extenso e não tem joguetes publicitários para prender sua atenção: acontece que normalmente as mensagens mais importantes não vêm em tinta fluorescente ou letra tamanho 36... Repasse a mensagem em nome de um mundo melhor.

sábado

O problema das cidades grandes

Olhei pelo parabrisa, as luzinhas da cidade estavam todas piscando. Pensei em um flashmob gigantesco, em invasão alienigena, em energia das fadas; depois pensei na fumaça de algum carburador. De qualquer forma, se fosse haver algo grande eu teria visto no jornal. Esse é o problema das cidades grandes, acreditamos mais nos jornais que em nossos olhos. O sinal abriu, acelerei. Hoje é domingo.
Não estou muito certo de que isso interessa, mas meu nome é Luis Otávio. Nome estúpido, não? Era um saco chamar Luis Otávio no fundamental. Pior ainda era a minha mãe, senhora Ana Luiza, que obrigava o mundo inteiro a pronunciar meus dois nomes. Era até entediante ser chamado com toda aquela pompa desnecessária. Acho que ela queria que eu fosse importante. Importante e íntegro. É, porque nome composto é coisa de gente reta, bem resolvida, com caráter polido e carreira decente. Voce já viu algum mendigo de nome composto? Algum viciado? Não. E se eles, por infelicidade do destino, têm mesmo um nome composto, logo abdicam de um deles ou substituem-nos por algum apelido tosco - a verdade é que nome composto é uma coisa imponente, é preciso muita dignidade para que lhe chamem pelos dois nomes.
O triste é que eu não mereço os dois nomes. E acho que decepcionei minha velha. Eu sei que depois do Luis Otávio todo mundo aí começou a imaginar um cara alto, de ombros largos, camisa de manga comprida com gravata vermelha, e meu carro foi logo jogado no patamar de um importado preto, polidíssimo e brilhante, com os vidros fechados e o ar condicionado ligado. E erraram. Quer dizer, minha camisa é mesmo de botão, de mangas curtas, mas de botão - só que tem o logotipo da empresa onde eu trabalho ridiculamente bordado no bolso do lado direito. E é azul clara. E meu carro é branco, e sem brilho. Um gol 93, se alguém realmente ainda está interessado na minha estória.
Bom, no caso de alguém estar, deve querer saber para que eu estou uniformizado em um domingo. O caso é que eu não voltei para casa desde o fim do expediente de sexta feira. Ah é, eu sou o menino do xérox. Entretanto isso não deve ser analisado como extrema rebeldia, pois de fato não tenho esposa, filhos, cachorros ou qualquer coisa que o valha esperando por mim em casa. Minha casa é medíocre. Quase uma quitinete. E sempre muito mal organizada. minha mesa de centro - era uma dessas bem vagabundas - quebrou uns meses atrás, quando um amigo trôpego sentou-lhe em cima. Desde então, minha mesa de centro são três latas de tinta e uma madeira quadrada - que tive o admirável trabalho de colar nas latas - com uma toalhinha. Isso mesmo, uma toalhinha! Tanta desgraça nesse mundo, e a minha mesa de latas de tinta tem toalhinha. Ai. ai, e é rendada... Bom, mas voltando ao fato de eu ainda não ter voltado para casa: estava de saco cheio. Ainda estou de saco cheio, só que preciso ir visitar minha mãe. A família inteira vai estar lá, e eu estou nojento e fedendo a bebida. Mesmo sabendo que a velha não iria ligar, estou indo em uma loja, aí vou passar em casa e só depois vou para a casa dela. É que ela está bem doente. Na pior, se querem saber. Eu vou vê-la aos domingos e às quartas, mas hoje a reunião se estendeu para a parentada toda, como que num ritual de despedida. Não que estejamos preparados para a morte dela. É que quando uma coisa é iminente, não interessa você estar pronto ou não, e sim preparar tudo para que aconteça da melhor forma. Se é que tem alguma forma boa de morrer. É que a minha velha é um tanto emotiva, então nós queremos que ela tenha a chance de dizer o que quiser para quem quiser, por via das dúvidas. Nesse ponto da narrativa eu bem poderia começar um monólogo sobre a doença da minha mãe, explicar todos os pormenores, descrever a personalidade das minhas tias gordas e os quadros da sala da casa, mas eu tou com preguiça, então vou apenas contar uma estória, de quando eu era menino.
Eu tava lá, no quintal, brincando com o barro - é que nós tinhamos uma horta. Minha velha é bem conservadora e por isso gosta de plantar a própria cebolinha, e tal. Hoje o espaço abriga uma grama ordinária, três cadeirinhas de ferro e uma mesa, minha velha também gosta dessa lengalenga de tomar chá e conversar - enfim, brincando com o barro, aí ela apareceu. Eu já tinha passado a lama até na cara, estava imundo, e quando ela chegou eu tive certeza de que ia tomar o maior esporro. Mas ela falou (eu lembro, certinho) "Luis Otávio, o jantar já está pr-- oh. Luis Otávio, vá tomar um banho para comer, meu filho." E só. Quando eu passei por ela, beijou-me a cabeça enlameada. Nosso piso era branco, e eu fiz a maior meleca com as minhas pegadas marrons, mas quando eu voltei pra comer já estava tudo muito branco de novo. Minha velha é dessas que amam a gente até quando estamos sujos de barro no meio da cozinha branca.
E agora, vejam só, eu estou meio triste. Quer dizer, ela tá lá, a beira da morte, e eu sou o garoto do xérox. Ela queria tanto me ver com o tal carro importado e a camisa de manga comprida! Eu sei que queria. Niguém bota "Luis Otávio" como nome do filho assim, à toa, sem pretensão... E eu tô fedendo. Terminei meu terceiro colegial capengando, arrumei um emprego de vendedor, e enganei todo mundo com essa de "quero só juntar um dinheirinho, mas ano que vem eu faço faculdade". Era sempre ano que vem. Até que param de perguntar da faculdade. É que eu nunca fui muito certo sobre o que queria fazer, e, pra ser sincero, eu também nunca quis muito. Quando eu percebi que já era tempo, e isso foi lá pelos 23, arrumei um jeito de sair de casa. E aí fui pra aquele moquifo, com toalhinha na mesa de centro, e não saí até hoje. Pra vocês verem até onde chega a merda da acomodação de um ser humano.
Meu vocabulário não é dos melhores, não tive curso superior, também não arrumei garota nenhuma, e assim fui ficando sem inspiração. Acabou que a vida foi passando e eu encostei num canto. Sei lá. Mas acontece que não tá nada bem. Perdi contato com os amigos do colegial (mas também eu não tinha muitos, espinhudo e encurvado como eu era), aliás, aposto que estão bem de vida hoje, os filhos da puta, a maioria de carro importado e camisa de manga. Mas não ter feito faculdade nem é o meu recalque não. Meu recalque é ter sido tão alheio. Eu podia ter dedicado a minha vida a algo importante, sabe? Não necessariamente a uma profissão, mas sei lá, podia ter virado hippie, podia ter feito algo de diferente nesse mundo, em vez de ficar apodrecendo com cerveja e televisão naquela quitinetezinha escrota. E, garoto do xérox? Mas que droga, qualquer coisa é mais vivo que garoto do xérox. Não que eu seja idiotinha o bastante para desprezar esse tipo de emprego, na verdade eu respeito muito quem rala pra ganhar a vida, seja como garoto do xérox ou como gigolô. Só que gigolô ainda teria mais emoção. Sabe? Sei lá. Garoto do xérox é monótono. Eu não queria ser milionário, mas também não queria essa vida de tédio. E, ah, a minha velha merecia mais que um garoto do xérox.
Saí do trabalho na sexta e fui para um boteco. Sou meio fraco para bebidas, se querem saber. No terceiro copo minha barriga começa a doer, e quase sempre acabo com diarreia. Mas adoro ficar ébrio. Bom, bebi uns vários copos, não comi nada, vomitei de leve, e aí bebi mais uns. Depois rumei para um puteiro. Eu sei que é triste precisar de um puteiro, e depois de vomitar ainda, quase que uma foto da decadência, mas cara, eu não tava nem aí. É por isso que eu curto ficar ébrio, é que então eu consigo não estar nem aí.
Quando cheguei lá, caramba, que tristeza que me deu. Odeio bêbado chorão, mas não deu, chorei. Umas putas gordas, outras meio pelancudas, credo. Mas arrumei uma até que boazinha. O legal mesmo foi que não transei. No quarto, continuei chorando, como uma menininha, e, pasmem, ela foi compreensiva. É lendário encontrar uma puta compreensiva. Mas essa ouviu a minha estória toda, falou uma ou outra coisa - que, alias, nem eram absurdas. Acho que no final das contas ser puta deve ensinar bastante sobre as pessoas... - e me deixou chorar. Aí eu paguei, fui beber mais pois estava voltando a ficar sóbrio e isso não era confortável, e aí fui para uma praça. O resto nem é importante. Dormi por lá, continuei bebendo e me odiando no dia seguinte, liguei pra um amigo, conversamos, ele foi embora e eu continuei na minha fossa, dormi em outra praça. Hoje de manhã eu cheguei a uma bela conclusão: a culpa é minha sim, mas a cagada não é irreversível. Tenho um empreguinho chato e uma vida chata, e isso é chato, mas se eu continuar nessa depressão boiola vou acabar é me matando. Decidi que vou passar numa loja granfina, comprar uma camisa de manga comprida e uma gravata, tomar um belo banho, fazer a barba e vesti-la; vou arrumar minha mala e depois vou lá ver minha mãe. Aí eu converso com as tias gordas, ajudo na cozinha, sorrio o tempo inteiro, dou um beijo na testa da minha velha e digo que amo muito ela. E aí eu vou embora.
Tem um lugarzinho, numa cidade litorânea a umas duas horas daqui, onde eu sempre quis morar. É um morro com vista pro mar, que não é ocupado. Vou fazer uma cabana por lá, e ficar alguns dias. Até alguém vir me mandar sair. Depois eu junto minhas coisas, volto pra cá, e se eu não for demitido, continuo sendo o garoto do xérox. Só que vou usar o dinheiro pra um curso superior. Administração, quem sabe? E já tenho a camisa e a gravata, e tal. A vida na cidade é uma bosta. Ninguém tá nem aí, mesmo sóbrios. O negócio é que ou você cala a boca e vai fazer o que tem de fazer, do tipo faculdade e puxar saco da chefia, ou você fica sendo o garoto do xérox. Esse é outro problema das cidades grandes, acreditamos mais num diploma que na pessoa que existe atrás dele...

terça-feira

Nossas páginas

"People are just people
They shouldn't make you nervous
People are just people like you..."
(Regina Spektor, Ghost Of Corporate Future)


Sempre ouvi dizer que todos somos legais até a segunda página. Estou começando a discordar. Afinal, todo mundo é legal exatamente depois da segunda página - na máscara somos todos clichés. É inegável que nas primeiras conversas com alguém estejamos todos encenando um papel, fingindo sermos o que melhor nos aprece, ou mostrando a nossa face mais trabalhada. E essa parte da relação é tediosa. Mais tarde, quando tirados os saltos e as maquiagens, é que a pessoa começa a mostrar quem ela realmente é. Somente lá pela quarta página é que podemos descobrir-lhe as reais qualidades e defeitos, sentir algo em relação a ela e ter um esboço de opinião a respeito. Antes disso, é tudo raso e fútil.
Mesmo porque julgar a pessoa até a segunda página é a maior injustiça. E se a casca dela não condiz com a sua? Isso não deveria significar que vocês não se darão bem. Quem já foi forçado a conviver com alguém cuja máscara lhe fosse repulsiva talvez concorde: depois da segunda página, quando não há mais tribo, classe social, time ou partido político, todos nós somos muito parecidos e capazes de afinidades. As primeiras páginas só servem para seccionar as pessoas, algo que eu acho extremamente inútil e triste. A diversidade da mentalidade humana é o que mais me encanta, não consigo concordar com a ideia de fugirmos de pensadores à priori diferentes.
Mas não posso fechar meus olhos ao fato de que estar rodeado por semelhantes gera conforto e é essencial, já que do contrário nos sentimos deslocados e frágeis e isso é muito desagradável. Insisto, porém, em que não passa de uma questão de ponto de vista: só iremos nos sentir estranhos longe de máscaras com as quais nos identificamos enquanto classificarmos as pessoas por tais máscaras. Uma vez entendido que essa casca é dispensável e estando-se decidido a olhar mais fundo, nós podemos compreender e sermos compreendidos por qualquer um. Sentirmo-nos deslocados é um erro da cultura imposta quando entendemos que o ser humano é nada além de um ser humano, em qualquer lugar. Aceitar e ser aceito só depende de lermos o trecho inteiro.

domingo

"Os indivíduos

devem matar-se uns aos outros porque os interesses da Nação o exigem; devem ser educados no sentido de cuidarem dos fins e desprezarem os meios, porque os mestres-escola não se fazem esperar e não conhecem outro método; devem viver em cidades, devem ter tempo para lerem os jornais e irem aos cinemas, devem ser instigados a comprarem coisas de que não precisam, porque o sistema industrial existe e precisa ser mantido em atividade constante; devem ser coagidos e escravizados, porque, do contrário, poderiam pensar por si e causar embaraços aos seus governantes.
O sabat foi feito para o homem. Mas o homem agora se comporta como os Fariseus e insiste em que ele é que é feito para todas as coisas - ciência, indústria, nação, dinheiro, religião, escolas - que foram realmente feitas para ele. Por quê? Porque tem tão pouca consciência de seus próprios interesses como ser humano, que se sente irresistivelmente tentado a sacrificar-se por esses ídolos. Não existe outro remédio a não ser tornamo-nos conscientes dos nossos próprios interesses como seres humanos e, uma vez conscientes, aprendermos a agir em conformidade com essa consciência. O que significa aprendermos a fazer uso de nós mesmos e aprendermos a dirigir nosso espírito."

Anthony Beavis, em Sem Olhos em Gaza / Aldous Huxley

Lugar comum

- Mas você suportaria sustentar vadios com o seu próprio trabalho?
- Então, mas a gente já faz isso. Só que eles chamam-se políticos. E outra, qual o seu objetivo por aqui? Acumular riqueza, bens e luxos, ou estar bem e ser o melhor que puder? Porque, se for o segundo - e deveria ser o segundo - você talvez devesse olhar melhor ao seu redor. Existem pessoas morrendo de fome, pessoas morrendo de frio - existências que valem exatamente tanto quanto a sua. Você suportaria ser indiferente a isso?
- Augusto, seu discurso socialista me cansa. Eu não devo ter qualquer empatia com a desgraça socioeconômica, essa é a magia de um sistema autossuficiente.
- Um sistema que cuida de si mesmo, enquanto esmaga o povo. E vocês concordam.
- Não acredito que você consiga acreditar em uma colocação tão pueril com seus quarenta e dois anos de idade. Será que você nunca vai amadurecer e entender que teoria e prática divergem? Você soa como um adolescente falando, Augusto.
- E você, Paulo, soa exatamente como um adulto. Sem sonhos, sem pretensões que não sejam graficamente prováveis, pragmático e insensível.
- E qual a vantagem em ser entusiasta? Qual o ponto em viver entre ilusões, com desejos impossíveis e com crenças equivocadas? Qual o sentido de tudo isso, depois que se olha pelo lado de fora uma vez?
- Eu não sei, Paulo. Mas responda-me você: qual é a vantagem do racionalismo e do decadentismo sob os quais você enxerga sua vida?
- Eles não são vagos ou fugidios. Seu sermão de altruísmo e empatia é quase místico. Ele não tem bases reais, foi todo fundado em esperanças e suposições. Não é um discurso seguro. Pode sim acontecer, mas eu posso citar-lhe vários exemplos - se não empíricos, ao menos embasados - de falência para o socialismo. E mesmo para a bondade humana. Não me ataque com termos pejorativos como pragmatismo ou niilismo. Trata-se de lógica. Uma lógica que demanda maturidade para ser atingida. Uma lógica que idealistas incorrigíveis, adolescentes de quarenta e dois anos, não podem compreender.
- Proposta alguma funcionará enquanto a maior parte da população continuar cega pelos discursos embasados do capitalismo. E sabe o que mais me chateia? As bases de que esses discursos se valem. São todos construídos sobre a natureza má do homem. O homem é egoísta, o homem é avarento, o homem é perverso; e todos aceitam isso prontamente. Como que "sim, nós somos sim", e ao admitir isso tivessem motivo para continuar sendo. Será que nenhum de vocês, adultos lógicos e senhores de si, é capaz de perceber o quão errado esse discurso é? Será que nenhum de vocês pode sentir que nós devemos mudar?
- Eu vejo isso como um teatro darwinista: somos todos animais em busca da própria sobrevivência e precisamos adaptarmo-nos ao meio (no caso, ao sistema), ao invés de tentarmos mudá-lo. A natureza prevalece. Você é apenas uma mutação inútil. Mais um dos que tentarão mudar o mundo para cair e ser esquecido mesmo pelos livros de história. E sabe por quê? Porque o seu gene reacionário não se encaixa no nosso contexto.
- O seu cientificismo é só o que você consegue ver. E você nem mesmo foi autor deste. É assim que eu vejo tudo isso. Eu e meus semelhantes somos sim adolescentes em ideário, mas vocês, embora adultos em comportamento, são crianças coagidas pela mídia. Vocês acreditam em tudo que uma revista especializada coloca. Vocês se ajoelham para a ciência sem questionar, pois a grande maioria não tem bases - sim, bases - para questionar. Vocês se ajoelham às faces da ciência assim como os medievais se ajoelhavam nas igrejas. E são tão cegos que aniquilam, com as próprias mãos e palavras, os dissidentes da ordem que os domina. Você está iludido, Paulo.
- Caralho, isso é o que eu mais odeio sobre socialistas. A saliva branca que espuma de suas bocas quando usam palavras bonitas em um discurso de luta de classes. Um bando de graduados cheios de morais e frustrados com o mercado de trabalho. Fracassados imaturos, que em vez de trabalhar nos próprios atributos para conseguir um emprego melhor, saem por aí mentindo idealismos sobre um mundo perfeito. Então somos todos crianças perante o pai governo. A diferença é que os mais espertos de nós sabem o que fazer para agradar ao papai e conseguir dele o que deseja, e outros choram birrentos no tapete da sala. Quer mesmo ser algo de útil, Augusto? Então cresça fronte ao governo, torne-se independente dele no lugar de reclamar assistencialismo, seja um anarquista. Continuaria sendo absolutamente inútil e você ainda seria frustrado, mas ao menos mereceria respeito.
- Ótimo. Um adulador que respeita a rebeldia e se acha digno de criticar o comportamento mais lógico para os filhos de um pai indiferente, o choro reivindicativo; brilhante, Paulo, simplesmente brilhante.
- Pois não, chame-me hipócrita agora. É a pejorativa esquerdista clássica. Lembra do meu niilismo e pragmatismo? É. Eles casam bem com hipocrisia. Corroa-se, eu até gosto. E não é por que isso me faz mais apto a sobreviver no sistema vigente. É algo sobre o meu caráter. Porque eu realmente sou egoísta, avarento e perverso, mas não é esse o meu "motivo", a minha inspiração, para continuar sendo. Não. Eu continuo sendo porque eu gosto. E eu não estou dizendo isso somente para irritá-lo - embora seu rosto avermelhando-se esteja-me sendo deleitoso de olhar -, estou dizendo tudo isso por que é a mais pura verdade. Augusto, eu conheço você há mais de quinze anos e me sinto à vontade para confessar, eu gosto e eu faço de propósito, eu sou assim e eu não sinto nenhum impulso autônomo para mudar. O que eu finjo é pela convivência social, mas meus sentimentos podem divergir um tanto. E eu não acho que eu tenha qualquer disfunção cerebral, nem que eu seja o único a sentir tudo isso. Transforme-me em um socialista, pois, em um filantropo convicto - e sincero -, e eu calo-me para sempre. Contudo, até mesmo você sabe que é impossível.

E Augusto ficou em silêncio. As luzes pareceram abaixar, onde quer que eles estivessem; a musica soou distante e fraca. Paulo reverberava sozinho, a boca espumante por seu próprio discurso, copiosamente enfeitado por palavras bonitas e silogismos também comprados, embora de filósofos menos populares, a pensar-se vitorioso daquele nada. Eles não eram vencedores ou fracassados, e eles não sabiam o que estavam dizendo.

- Você disse anarquista, sim?
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sexta-feira

"rambling man"


a gente morre o tempo todo. a gente vive morrendo, de novo e de novo. falamos coisas que não fazem sentido, com ou sem pretensão de parecer quaisquer coisas. agimos sem coerência, pra arrependermo-nos mais tarde. ou não. às vezes não ligamos a mínima. se eu me preocupo com a gramática e falo palavrões, é porque e apenas porque eu vejo que sempre erro na gramática, e ainda torço o nariz para alguns verbetes. essa romantização do ser e do não ser não faz o menor sentido, mas não deixa de ser tocante. o mesmo para a idealização do escrever, quando escrever é vazio. às vezes é esse vácuo mesmo que idealizam. a gente adora idealizar o ignóbil. no fundo a gente não faz ideia de o que pensa. e de o que somos. huxley me agradou hoje pela manhã, através da obra de um personagem. eu sempre reclamei não ter tido nenhum motivo maior, grandiloquente ou traumático que fosse, para moldar-me a personalidade - escolhi a dedo tudo o que fingi ser até agora. anthony, o personagem, colocou que a única possibilidade sincera de personalidade é aquela que não se é moldada pelo meio. aquela que não se define e que não tem razão para ser, pois somente esta pode vir do nosso verdadeiro âmago, e não de um desenhado pelas circunstâncias. ou talvez anthony não pensasse nada disso e o meu cérebro tenha deixado-se divagar demasiado. mas, independente disso, ele logo se embasbaca em sua própria desgraça de caráter romântico e justifica as conclusões como fugas generalizadoras vazias de significados, as quais ele apenas buscou por consolo fraco. não vou desmenti-lo, pois então ele explica que apenas os bárbaros e ignorantes têm uma personalidade, pois nada sabem de si, ou em que podem transformar-se, e a partir dessa linha deixa de felicitar-me para cair de cara em uma explicação surda. existir é tão vazio. ser. a gente não é. a gente nem sabe o que fazer para começar a ser. personalidades, limites, obras... não passam das fugas generalizadoras do anthony. do huxley. suas e minhas. e tanto faz ser romântico, intelectual, claro ou caótico - e ninguém está sugerindo respectividade entre essas linhas -, o homem "não-é" do mesmo jeito. e se eu perdi a clareza, não quer dizer que já não tenha um sentido. ao menos não obrigatoriamente. que seja. o homem não-é. o homem não-sabe. mas ele quer... só que, bem ou mal, eu estou morrendo agora mesmo.

oh naive little me, asking what things you have seen, and you're vulnerable in you head
you'll scream and you'll wail 'till you're dead
creatures veiled by night, fallowing things that aren't right,
and they are tired and they need to be led
but you'll scream and wail 'till you're dead
[...]
but if i sit here and weep, i'll be blown over by the slightest of breeze, and the weak need to be led
and the tender are carried to their bed, and it's a pale and cold affair, and i'll be dammed if i'll be found there
[...]
and it's hard to accept yourself as someone you don't desire
as someone you don't want to be
http://www.youtube.com/watch?v=JvwWzcLfH-k

sábado

Limitar a educação?

"A educação é um processo social, é desenvolvimento.
Não é a preparação para a vida, é a própria vida."
(John Dewey)

É um pouco incoerente reclamar sobre a educação nacional e erguer placas contra quando alguém sugere alguma mudança, mas eu não me convenci de que a proposta de José Fernandes de Lima, do Conselho Nacional de Educação (CNE) seja satisfatória.
A ideia é que as escolas priorizem uma área do conhecimento, dando a esta maior ênfase. As tais áreas ficariam divididas em ciência, tecnologia, cultura e trabalho. O objetivo alegado é aumentar o interesse dos alunos na escola, o qual segundo as estatísticas é atualmente muito pequeno. Com a ultrapassada premissa de "aproximar a escola do aluno", a nova configuração - que deverá atingir o ensino médio, caso a medida seja homologada pelo Ministério da Educaçao (MEC) - pretende tornar o conteúdo dado em sala de aula mais condizente com a carreira que o aluno pretende seguir, o que em teoria aumenta o empenho dos estudantes em realmente aprendê-lo.
A sugestão é que as áreas de atuação das escolas sejam coerentes com a localização das mesmas - o que eu particularmente acho horrível. Os exemplos não ficaram claros para mim, pois não especificou-se exatamente o que se inclui em cada uma das áreas (quais as divergências entre 'ciência' e 'tecnologia', e que diabos se estudará na área 'trabalho'?), mas predestinar as pessoas de acordo com o local onde vivem me parece muito errado.
Se cidades industriais focarem-se em tecnologia, e cidades litorâneas em cultura, ainda que nenhuma cidade fique sujeita a apenas uma área de aprofundamento já que existem várias escolas em cada uma, a diversidade de pensamento - e quiçá o senso crítico - serão prejudicados.
Ao meu ver, o processo educativo perderá sua essência, pois já não terá como objetivo proporcionar conhecimentos diversos para que o aluno, o ser humano, descubra-se e forme-se de acordo com suas crenças e preferências. Na verdade, acho que tal divisão da escola em áreas de atuação causará um grande alienamento, que contrapõe-se integralmente ao meu conceito de escola ideal.
Além disso me preocupa a noção de que se essa medida for aprovada, a escolha da carreira a ser seguida pelos alunos se antecipará ainda mais, e se já é um suplício ter que decidir qual área seguir no terceiro colegial, decidí-lo no primeiro colegial - ao optar pela escola e por conseguinte pela área de atuação da mesma onde será cursado o ensino médio - é uma péssima ideia.
Ao concluir o ensino fundamental, os adolescentes geralmente não têm ainda a noção de a qual área do conhecimento pretendem se dedicar. Esta é uma escolha muito importante e que exige maturidade e autoconhecimento. É insensato pedir que alguém de catorze anos saiba o que pretende fazer de seu futuro - já acho insensato exigi-lo a pessoas de dezessete.
A educação brasileira precisa melhorar em todas as áreas, e não cumprir seu dever em apenas uma. Soa como comodismo, como enganação. "Se não conseguimos ser bons em todas as áreas, abandonemo-las para nos esforçarmos em apenas uma", é como eu ouço a notícia. A educação não será melhor se cumprir de verdade o seu papel em apenas uma área, pois tornar-se-á deficiente nas outras.


quarta-feira

Sobre os bits de informação

A literatura me tortura. Reler o conceito de romantismo até o fim foi quase masoquista. Da torre de Marfim, escapista, melancólica. O pior foi ler sentimentalismo diretamente associado - quase que sinônimos - a egocentrismo. E a conteúdos rasos. Ah. Depois os conceptismos, cultismos, rebuscamentos confusos e quiasmos toscos, seguidos das antíteses incoerentes (mas que caiam bem na métrica). Também vi os bucolismos desprovidos de quaisquer significados, novamente prezando-se as formas e as regras. Fiquei frustrada (e envergonhada) pelo condoreirismo, ainda egocêntrico e sentimental. Expressões grotescas de todas as épocas.

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O estudo das produções humanas é extremamente útil à formação do caráter, pois retratam muitas experiências que todos nós estamos fadados a viver um dia. A melhor parte é que vemo-las por lentes impessoais, pelas quais conseguimos julgar diferentes quadros de forma equilibrada e sincera, para só depois percebermos o quão próximo de nós mesmos é a tal característica recém-julgada. Eu revirei os olhos e esbocei críticas a muitas das manifestações artísticas de diferentes períodos da historia para só depois enxergar que eram exatamente as minhas debilidades que eu estava satirizando. Foi desagradável, já que tive plena consciência de que aqueles comentários jocosos eram realmente a minha opinião sobre o que eu estava lendo ou vendo, e que eu realmente repudiava muitos dos meus traços de personalidade. É frutífero estudar as criações humanas por serem elas fotografias de nós todos, julgar tais é uma maneira de ver a si mesmo como se do lado de fora.


Acho engraçado como o que eu ouço/leio/vejo/sinto frequentemente se reproduz mais tarde em outras circunstancias, e meu cérebro as une como que por impulso, a formular conclusões, gracejos ou perguntas que me surgem inesperadas. Vi algo sobre assimilarmos conscientemente menos da metade de todas as informações que o nosso cerébro percebe a cada instante, sendo que o restante fica no inconsciente sem que tenhamos a percepção disso. Acho que daí surgem tantas analogias e combinações, e destas as criações intelectuais, factuais ou materiais. Por isso o mundo que nos cerca tem ampla interferência nessas criações, mas, ao mesmo tempo, a máquina humana é basicamente a mesma desde o primeiro milênio, o que influi na grande proximidade dos sentimentos vividos nesta e naquela época.


As circunstâncias alteram-se a cada momento, mas, afinal, nossas fraquezas e habilidades são em suma parecidas - o que me convence de que não é absurdo termos ainda as angustias que tinham os navegadores do mundo plano e de monstros marinhos. Vi na humanidade a qual tive acesso ignorâncias, fragilidades e soluções falhas que são integralmente comuns a mim. Encontrei defeitos e a principio me envergonhei por partilha-los. Contudo, odia-los e despreza-los, além de autodestrutivo, é inútil à resolução dos meus semelhantes defeitos. Pude ver que entender o processo histórico nos mais diversos pontos é essencial a cada um de nós, é a única forma de saber onde realmente pecamos, pois é o único espelho no qual podemos acreditar. Se a crítica vier de nós mesmos e for, à priori, mascarada, será intuitivo aceitá-la e possível segui-la. Ademais, a humanidade ainda tem qualidades a serem descobertas.

sexta-feira

don't call the doctors
they've seen it all before
the'll say
"just let her crash and burn, she'll learn,
the attention just ecourages her"

Girl Anachronism - Amanda Palmer

sábado

Voltando pra casa

Hoje eu saí da escola relativamente tarde. Estava cansada e faminta, por isso decidi que merecia um milk shake. Cheguei no ponto a tempo de pegar o ônibus, mas perdi-o, resolvida a comprar meu sorvete. Comprei, vi um outro ônibus que me faria a vez passar, não daria tempo de correr. Me sentei, esperei alguns minutos, mas eu sabia que nenhum ônibus que me atendesse passaria por ali nos próximos cinquenta. Subi até outro ponto, no qual fiquei só alguns segundos, quando decidi que um terceiro, um pouco mais acima, me daria mais opções. Fui, o ombro doendo pelas duas bolsas, o mp4 passou de ney para pitty, eu sorri. Pitty é tão nostálgico. No terceiro ponto havia ainda um banco, o qual eu desejava deveras então, mas estava ocupado pela bolsa de uma quarentona. Pensei azeda comigo, "é, é por isso que eu sento nos lugares reservados". Estava realmente pesado, então parei em frente ao banco, tirei a bolsa transversal e pus no chão fazendo manha, gemendo 'ai'. Ela tirou a bolsa. Agradeci e sentei-me, satisfeita. Passou um belo tempo, a mulher foi embora, outras chegaram, chequei meu celular, dezesseis ligações perdidas, todas da minha mãe, claro. Liguei pra ela, que estava estressada, perdi todo o bom humor e desliguei tão logo quanto pude. Música alta, brigando com a mãe, quão típica... Juro que percebi olhares de reprovação dos comparsas do ponto, mas posso ter imaginado. Outro ônibus que me servia passou, mas não parou. Frustrante. Escurecia, e o milk shake acabara. Aí notei que alguém falava comigo. Tirei um fone, pedi desculpa, era uma senhorinha. Bem frágil, magrelinha, toda enrrugada e de cabelos brancos. Meias estampadas marrons com bolinhas - acho que eram bolinhas - rosa, rasgadas nas pontas. Sandálias ortopédicas, vestido - ou saia? - e celular no pescoço. Só reparei dos joelhos pra baixo porque era tal o limite do meu campo visual. Enfim, falava comigo. Perguntava se o número, 62seiláoque, teria um 3 na frente. Disse que tinha, ela tentou digitar. Não conseguia, ofereci ajuda. Digitei, ela ligou, ouvi o começo da conversa e recoloquei os fones. Notei quando ela desligou, e por ter sido bem na pausa da música, notei que ainda falava. Tirei os fones. Ela começou a conversar comigo. Contou que iria à missa. Contou que suas pernas doíam. Contou que seis meses atrás um motorista de ônibus dera partida antes que ela conseguisse terminar de descer, e que ela caiu. Caiu de pé, "graças a deus", na hora não sentiu nada. Depois sentiu dor. Agora a perna doía "que nada dá jeito". O médico já passara-lhe remédios de todos os tipos. Doía ao dormir, e ao acordar. Ao acordar era pior, mal podia relar os pés no chão. Mas à noite era "uma dorzinha enjoada". Estava doendo naquele momento, mas ela aguentara por querer ir à missa. Era daí a vinte minutos. Contou que colocara uma prótese, não me lembro onde, dez anos atrás. Contou que já passara por quatro cirurgias. Contou que fez uma no coração. Contou que achava que os médicos escondiam-lhe os motivos da dor na perna, que achava que deveria operar, que sabia que eles não queriam operá-la pela idade avançada. Contou que machucara o joelho hoje cedo, batera na pia, sangrou até. Contou que o homem para quem ligara, para contar sobre a dor e o joelho, era como um filho. Contou que seu filho morrera, um mês atrás... Então a voz dela falseou. Olhei-a, os lábios tremiam. Queria chorar. Falou sobre como era tudo difícil. Contou que não sabia o que fazer, que achava que devia arriscar outra operação. "Vou deixar na mão de deus". Na mão de deus... Quis abraça-la, mas não o fiz, não sei porque. Aí um ônibus, o que passara antes sem parar, apareceu na esquina. Como eu sabia que o próximo demoraria a chegar, pedi licença para pegar aquele. Uma outra mulher, que já tinha alguns fios brancos, ouvia a nossa conversa. Melhor dizendo, as palavras dela. Eu não encontrei nada além de "é complicado...". Me deu licença, desejei-lhe boa sorte, com tudo, saí correndo pois o ônibus estava parado no ponto da frente, uns cinco metros pra lá. A outra mulher me lembrou que eu estava esquecendo a bolsa transversal, agradeci, peguei-a, corri. Entrei no ônibus, enfim. Chorei. Deus... Errei ao dizer que ele não existe. Sei lá se ele existe. Mas quem poderia dizer àquela senhorinha que ele é uma mentira? Tanto faz se ele existe... Mas eu desejo, do fundo de mim, que ele continue a existir na concepção dela. E sabe a Pitty, o milk shake, a grosseria no telefone, os assentos reservados? Então, nunca me senti tão idiota.

domingo

http://www.youtube.com/watch?v=QbeHq1CLqJ8

Estou improdutiva para textos. Ultimamente escrevo minha tese em duas linhas, e então me foge qualquer inspiração para continar a escrever. É como se, ao colocar em palavras algo no qual eu acredito, aquilo se mostrasse simplesmente tão óbvio que eu não enxergue necessidade nenhuma em alongar-me no assunto. Também ando cansada de discutir comigo os meus dilemas, apenas os ouço e calo. Se por um lado sinto a vontade crescente de nunca mais falar com ninguém e definhar envolta em minha dor infundada, também se faz presente uma preguiça de tudo isso. Preguiça de me fazer triste, preguiça de me destruir. Porque é uma tarefa árdua, saibam. Pensar o tempo todo, sempre a maquinar agulhadas, me vigiar e censurar... Estou entediada comigo. Sabe aquela relação de casal de meia idade em que um já sabe tudo o que o outro vai dizer, como vai reagir e as sensações que isso despertará? Aquele tipo de casal que já está tão enfastiado de tudo que o parceiro tem a oferecer, que simplesmente se viram para lados opostos e abrem um buraco negro na cama de casal, enquanto reconsideram as solidões do dia assim como deve ser: sozinhos. Essa é a minha relação comigo. Velha, desgastada, monótona e impotente. E é isso, a minha tese.
Estou me sentindo completamente doente. De repente eu perdi qualquer expectativa de futuro. Fui para o primeiro colegial empolgadíssima com a chance de ser querida por muitos, a tal popularidade, era algo que eu nunca tivera. Meu segundo colegial foi absolutamente deprimente e eu me deixei iludir pela atraencia de um terceiro diferente. O terceiro chegou, a escola mudou, estou agora convivendo com um grande número de pessoas novas, e querem saber com quantas eu falei? Com duas. No primeiro dia. E só. Agora me pego sonhando com as festas da faculdade. Não havia me ocorrido ainda que eu muito provavelmente não terei uma turma pra ir às festas. Eu sou tímida e introvertida, e dificilmente me deixo gostar das pessoas, então quais as chances de eu realmente curtir tais festas? Acho que vou acabar enfiada em um quarto estudando muito, a sonhar com a vida profissional. Eu já saí com todos os meus amigos, e nenhum deles me fez sentir diferente. Foi legal na primeira vez, claro, mas depois sempre foi tudo tédio e dever social. Estou sempre desesperada por me jogar em quaisquer braços que se predisponham, pois tenho um buraco do tamanho do mundo escondido em mim - nenhum dos tais amigos algum dia percebeu minha gravidade. Na verdade, sinto como se ninguém pudesse entender. Não é que o meu ego seja tão grande que eu ache que não existe pessoa a altura. Na verdade eu me sinto podre e vazia, e estou eternamente sentada no canto a esperar por aquele que me dirá as palavras certas, que terá o toque certo, que preecherá todo o vácuo que eu criei em mim ao tentar me entregar para toda e qualquer pessoa que passasse por perto sabendo que essa pessoa jamais teria tal poder. Eu me sinto mal por quem eu sou. Me sinto mal pelo que eu faço. Eu preciso sobremaneira de algo que me tire dessa escuridão. -----------------------------------------------------------------------

quarta-feira

Impressões

Um lugar fétido, sujo e pervertido. Paredes descascadas, tijolos quebrados e um cheiro horrível. No chão, uma mulher jovem e feia. O rosto marcado pelo barro já seco, a boca escancarada com um filete de sangue e os olhos entreabertos em uma tentativa - teria tentado? - jocosa de desdém. A roupa estava parcialmente rasgada e os braços e pernas caídos de forma nada equilibrada, na mão esquerda jazia um canivete e no corpo pequenos buracos retos dos quais borbulhara sangue quente há pouco, o mesmo que agora seco e estampado na blusa azul causava repulsa e um sarcasmo doentio. Frio, Pressa, Nojo, Enfastio.
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Blusa de frio larga, colorida e fora da moda. De lã. Cabelo bagunçado, vento e chuva, muita chuva. Doces e risadas, um abraço bem apertado, travesseiros e meias. Em cima da cama, com uma escova na mão e uma pluma de aniversário posando de cachecol, uma mulher está a cantar algum hino de fim de formatura com a maior força possível, remetendo a alguma piada interna do grupo de amigas que estão no quarto. Todas riem, uma se levanta, a empurra da cama e toma seu lugar, cantando com expressões ainda mais forçadas, e dançando propositalmente mal. A que fora empurrada cai no tapete, com as almofadas, ri, sobe outra vez e pega a escova com a outra. Cantam juntas. Brigadeiro. Edredrom. Alegria, Despreocupação, Espontaneidade, Carência.
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Quarto. Ele, com outra. Ela na porta. P da vida. Puta da vida. Fudidissma, a maçaneta da porta bate com força na parede. A tal outra sai de foco. Tanto faz: se esconde, foge, vira pó - não é importante. Ele arregala os olhos e se cobre. Ela não chora. Não chora, não fica estática, não sai correndo. Vai, a passos rápidos, para cima dele, e bate, soca, quebra, machuca, com muita vontade e todo o seu potencial. Ele se encolhe. Não xinga nem protege. Aguenta calado. Ela também não xinga. Bate até cansar. E sai. Ódio, Indignação, Agressividade.
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Noite. Sozinha. Perdida. Longe de casa. As letras de neon de uma casa de shows alternativa ditando a aura da rua. Um homem gordo. Cheiro de cigarro. Ela trajando uma saia pink, blusa rendada e salto alto. Fome. Pouco dinheiro. Dois homens mexem com ela, nada obsceno, mas ela resolve andar mais rápido. O barulho do salto no asfalto. Vergonha, Medo, Insegurança.
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Conversas. Respostas rápidas. Palavras jorrando por impulso. Ambos gesticulando confusamente. Risos. Sarcasmos. Entrelinhas e mais risos. Falam sobre assunto nenhum e não parecem nem um pouco preocupados com a densidade e importância dos temas e teses. Às vezes discordam sem raciocinar e na maioria mentem morais sem saber o porquê. Divertem-se. Entretêm. E agradam. Então entra um terceiro na roda, cujos tópicos são mais bem articulados e chamativos. Ela sede o espaço. Logo se perde na discussão e para de tentar se posicionar. Eles continuam a conversar no mesmo rítmo, naturalmente. Ciúme, Raiva, Auto-depreciação.
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Colação de grau. Oitava serie. Orador da turma. Palco. Microfone. As mãos dela estão tremendo e suando, com varias pequenas aglomerações de vermelho por baixo da pele branca e fria, então. Põe o papel no suporte e respira fundo, discretamente, tentando disfarçar o nervoso. Silencio. Todos os olhares. Uma tosse. Sua deixa. Começa, a voz treme, decide olhar para o fundo da sala, começa a proferir as palavras já tão bem ensaiadas. Vai muito rápido, percebe que está fugindo das entonações que ensaiara com tanto apreço, e no caminho seus olhos se encontram com aquele amigo. Ele faz uma careta engraçada e caçoa sobre postura da professora carrasca. Ela ri histericamente, para de falar, olha para as pessoas das três primeiras fileiras. Ele sorri e a olha afetuosamente. Ela volta os olhos para e primeira linha e recomeça o discurso, sem ligar para as palavras que acaba trocando e inserindo um ou outro gracejo improvisado. O discurso acaba. Aplausos. Segurança, Confiança, Aceitação, Amizade.
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Cachorro. Pelos brilhantes e macios. Mau hálito. Latidos. Mordida. [?]
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Entre os zilhões de coisas que me passaram pela mente hoje (influenciadas por músicas, ideias e puro tédio, ilustrando cada sentimento que me contemplou nessa tarde), vomitei aqui os que estavam me dando indigestão.

sábado

Eu estava no ponto de ônibus, terminando de mastigar o meu café da manhã enquanto cantava repetidamete o mesmo refrão de música - que, aliás, cantei o dia todo, sem avançar nem uma frase a mais. Eram seis e pouco da manhã, estava chovendo. Chegou uma senhora. Puxou assunto comigo sobre nossos agasalhos mal costurados, sobre o tempo. Aí brincou dizendo que desejava que a chuva estivesse mais forte para poder não ir trabalhar. Sorri e disse que eu não teria esse direito. Então ela disse que estudar é muito fácil. Ah, claro que é. O mundo todo é mais fácil que o que você tem de encarar. Então ela comentou que começou a trabalhar com nove anos. Fiquei espantada. Perguntei a respeito, e ela disse que com oito já cuidava de duas crianças. Com oito eu só tomava banho sozinha. Me doeu notar o quão mimada eu sou. Nunca enfrentei a vida, nunca tive um único problema real, nunca precisei ser forte. E ainda me acho no direito de chorar. Eu sou infantil até por querer que fosse diferente. Imagina? Querer ter sofrido mais. Só a mais boba das crianças chegaria a conclusão semelhante. Independente de como eu gostaria que tivesse sido, não muda o fato de que eu sou desprezivelmente crítica sem nunca ter tido um único motivo decente. Ah, todos os dias ruins... Não foram nada. É tão trágico olhar pra uma vida e não encontrar nada de impressionante. Tenho vergonha da facilidade com que cheguei até aqui. E nem mesmo asseguro que teria chego caso as circunstancias tivessem sido diferentes. Não. Eu talvez tivesse caido no primeiro falsear do caminho, talvez eu tivesse desistido e hoje fosse algo ainda pior. Mas eu nunca vou saber. Eu deveria usar essa dádiva para me fortalecer sempre que meu espirito negativista me convencer de que as coisas vão mal. Eu com certeza deveria. Ao invés disso, assimilo tudo como uma frustração imprecisa. Decepção.

sexta-feira

-

Todos queremos ser únicos. Essa história de querer se sentir aceito só é verdade por alguns ângulos. Na maior parte do tempo estamos mesmo é tratando de ser diferente, de parecermos nós mesmos - mas naquela versão pré-escolhida. Todo mundo sorri por dentro, mesmo que inconsciente, quando chamam-lhe de "estranho". A verdade é que assimilamos (e não sei se isso é certo ou não) ser diferente com ser especial. Não importa em qual aspecto, desde que você saia do senso comum. Mas o problema é que somos todos idênticos. Todos falamos do mesmo jeito, sentimos as mesmas coisas, erramos os mesmos erros, e, mais cedo ou mais tarde, pensamos sobre os mesmos assuntos. Não há fuga da regra: dois olhos, boca, nariz, cabelo, tronco e membros. Um corte de cabelo, uma maquiagem ou uma tatuagem não muda nada disso. Me peguei hoje mesmo cogitando a ideia de que os deficientes físicos se sintam especiais, diferentes, únicos por tal. Mas então caí no conceito de que todos estamos somente em busca de aceitação, que como eu disse, é uma verdade por alguns ângulos. Agora, pensando a respeito, acho que quase entendo os motivos. Nossos instintos animais nos levam a pedir por aceitação, com fins como perpetuação da espécie, proteção e todo o mais; mas a parte mais recente de nossa mente, aquela que nós mesmos construímos com costumes, crenças e regras e que tem total consciência do espelho, da tv e do computador, essa parte vive em prol de autoaceitação - e esta prima a excluisividade.
...O meu problema, realmente, é não saber qual dos dois lados grita mais alto em mim.

quinta-feira

Lilie

Quinta à noite, os carros não dão a mínima para a maldita pedestre na chuva. E nem ela. Ela meio que estava gostando de se molhar, de molhar os papeis na bolsa. Eram cartas que ela recebera da família no último ano. Haviam feito um trato: não se veriam por um tempo. Quanto tempo? O tempo que precisasse, ela disse. O nome dela era Jéssica. Era. Depois daquela conversa ela desistiu de ter nome. Aconteceu, simplesmente. Foi aquele tipo de coisa que precisava acontecer com ou sem o consentimento de alguém. E bom, ninguém consentiu, não exatamente. Só calaram. Não tinham forças para parar, segurar, consertar. Nem para tentar. O que houve foi que Jéssica era uma daquelas adolescentes idiotas que pensam que sabem tudo, e ela sempre fez besteiras maiores que as quais com que podia arcar. Ela quase sabia disso. Mas só quase. Foi entender mesmo quando precisou dormir na calçada e acordou com dores. Que seja. Jéssica era imatura, e conhecia bem as palavras. Talvez bem não... Mas as conhecia. E palavras fortes em uma boca imatura nunca pode dar em coisa boa. Não dava. Ela perdia amigas e machucava garotos com a maior frequência. Sem falar que também se machucava com tais palavras. Como não poderia deixar de ser, machucava a família. E claro que fazia tudo isso consciente. Vale lembrar que vez ou outra Jéssica tentava se frear - mas nunca conseguiu, pelo que se sabe. Acabou passando dos limites com a família um dia, e sabendo disso propôs ficar longe durante o tempo necessário. Não foi fácil nem bonito, e um tanto longe de divertido. No primeiro dia ela andou para longe. No segundo, comeu a comida industrializada que trazia na bolsa. No terceiro gastou algum dinheiro com comida e decidiu alugar um quarto. Foi parar em um fim de mundo, e notou que precisaria de um emprego. Começou a desanimar, a se arrepender, mas era orgulhosa. Em uma semana conseguiu emprego em uma lanchonete, o que foi um alívio já que a dívida no pensionato estava começando a ficar preocupante. Mudou para um hotel barato com o primeiro salário, e decidiu infantilmente ir a uma festa com uma colega do trabalho. A garota se chamava Amanda, era uns dois anos mais velha que Lilie - já não usava seu nome verdadeiro, doía-lhe ser chamada por tal -, e vivia em circunstâncias parecidas com as dela, embora por motivos diferentes. Ficara grávida em pleno colegial, e, não que tenha sido propriamente expulsa de casa, o orgulho adolescente é tão complicado... Acabou brigando com o namorado e sofrendo aborto espontâneo em menos de dois meses, mas já eram águas passadas. Foram à festa, que fez toda a diferença. Lá conheceram Sabrina, uma trintona de quem logo se tornaram grandes amigas. Sabrina se divorciara recentemente e, embora mais velha, não era psicologicamente muito mais complexa que as outras duas. Aconteceu que encontram umas nas outras apoio, algo como a família que as faltava, e boas companhias para noites vazias. Foram morar juntas - tudo no nome de Sabrina, que era, nas aparências, a mãe das outras duas. Mas só nas aparências. Até que as três se pareciam fisicamente: todas com cabelos e olhos castanhos, lábios grossos. Já havia se passado cinco meses desde que Lilie saira de casa. Mandou uma carta aos pais informando endereço, pedindo para que não a visitassem ou informassem tal endereço e contando que estava bem; enviou também uma foto das três juntas, e se desculpou por tudo em entrelinhas. Uns nove dias depois começou a receber correspondência, e se tornou tradição: toda quinzena a família mandava uma carta. Lilie nunca respondeu a nenhuma, mas eles continuavam a mandar. O sucesso da garota com a reconciliação incentivou Amanda a procurar a própria mãe, com o que não obteve êxito. A mãe dela havia se mudado, e muita coisa fora dita, gritada, tanto que Amanda logo achou melhor deixar tudo como estava. Daí pra frente foi tudo tranquilidade: Sabrina acabou encontrando um pretendente, Amanda voltou a sair com garotos e Lilie conseguiu emprego como funcionária de uma loja de roupas em um bom bairro. Bom, nem tudo. Lilie andava triste. As cartas lembravam-na de quem ela fora, lembravam-na de que ela tinha tudo, de que se colocara naquilo por vontade própria, e também lembravam-na, embora por palavras austeras, de que poderia receber amor caso pedisse. Ela se sentia culpada, novamente, pelos erros que cometera. Bastou ler o primeiro "querida" em uma das cartas para desabar. Então voltou a sentir aquela culpa e aquela frustração, e também a descontá-las nas pessoas mais próximas. Ela quase fez tudo de novo. Mas na terceira briga, quando viu nas amigas o mesmo rancor que levara anos para despertar na antiga casa, ela se abaixou. Escorregou pela parede e chorou, sem dignidade nenhuma, até fazer as colegas sentirem pena. Quando parou de soluçar se desculpou, culpou aos hormônios e foi dormir. As outras duas acreditaram. Depois decidiu que iria consertar as coisas. Hoje acordou, deixou um bilhete na garrafa de café avisando que voltaria tarde e saiu, levando as cartas. É uma quinta feira de manhã.

quarta-feira

Fones com música no máximo apesar da minha dor de cabeça; quem sabe expulse essa loucura pelo meu nariz?

terça-feira

Tédio no senado

Hoje eu liguei a televisão no TV senado. Não vou mentir, estava tentando pôr no canal de música, mas errei o número, e então tive preguiça de mudar novamente já que eu ainda não tinha despertado completamente. Bom, com a pálpebra pesada e a bebericar meu café, comecei a assistir. Que grande decepção.
O canal está de parabéns, explicando acontecimentos históricos e o funcionamento do nosso sistema político de forma clara nos intervalos, incentivando a cultura e noticiando o telespectador sobre os projetos de lei aprovados mais recentemente. Meu problema foi com a sessão do senado a que assisti.
Apesar do meu incômodo com como o representante de tal lia mal, com estranheza, aparentando nunca ter visto antes o papel que lia, o meu problema real foi com como era feito: dois homens de idade avançada sentados em uma mesa com papéis e um copo de água, lendo suas falas - fiquei inconformada, eram falas mesmo! Um se dirigindo ao outro através da uma leitura plástica. Estavam lendo projetos de lei já aprovados e sugestões para os tais com uma entonação tão morta que eu duvido que eles mesmos estivessem realmente concentrados no que liam. Ademais, eles fizeram a reunião toda em trinta minutos, dando pausas de só alguns segundos para argumentação pelos presentes. Claro que ninguém se pronunciou. Me pareceu ser sempre assim, e não houve manifestações que desmentissem isso.
Por que, afinal, todos aqueles senadores estão recebendo salário? Nem um mísero comentário. Ao meu ver eram todos figurantes de um teatro ruim - um teatro ruim, foi a exata impressão que tive. Pessoas, instruídas e civilizadas com ternos vindos da lavanderia, lendo e ouvindo palavras de um português nada usual; fingindo o que o cargo impunha e agindo segundo as formalidades. Em momento nenhum eu vi naquilo algum tipo de vontade ou verdade.
Roupas bem passadas e palavras bonitas nunca vão resolver nossos problemas. Pessoas reais, com sentimento - estudo também - e muita determinação é que vão. Não encontrei determinação nas vozes que ouvi em tal sessão.
Contudo, a minha decepção não desmerece em nada o canal, o qual recomendo. Pode não ser mais legal que o canal de música, mas é preciso que os nossos direitos sejam sabidos por nós, para só então ser sensato esperar que sejam reivindicados. O canal é acessível por parabólicas, televisão paga e mesmo aberta em algumas cidades; além de estar disponivel no site do mesmo.